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a natureza e o tempo (o mundo)

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SOBRE A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS
aurora    3500-64 a.C.    63-1054 d.C.    1054-1750


ENXERGAR O FUNDO DO LAGO PARA VER DURANTE A TEMPESTADE…
(sobre criacionismo e evolucionismo, disputas sobre as origens e o presente)

por Euler Sandeville Jr.
Junho de 2017 [1 *notas no fim da página]


como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “enxergar o fundo do lago para ver durante a tempestade… (sobre criacionismo e evolucionismo, disputas sobre as origens e o presente)“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.


Lago no Caraça, MG, foto Euler Sandeville Jr. ago, 2010.


Qual é a origem de nosso mundo e como é a origem dos homens nesse mundo? Essa pergunta tem recebido ao longo de milhares de anos inúmeras interpretações, pode-se dizer mesmo que em todas as épocas e lugares cada sociedade, cada povo, procurou em algum momento responder a essa pergunta. Mesopotâmios, gregos, egípcios na Antiguidade desenvolveram, ao longo de sua história, por vezes mais de uma narrativa riquíssima procurando respondê-la. De certo modo, as narrativas gregas se universalizaram, embora retiradas do campo das crenças para o das mitologias e do psiquismo.

Também os hebreus nos legaram um relato milenar. Ao contrário daqueles de povos vizinhos, este também veio a se universalizar, porém mantendo sua dimensão do sagrado. Sua base é a criação de todas as coisas por Deus, e sua intervenção na história. Sua difusão foi favorecida por fatores históricos externos aos hebreus, com a origem de uma sociedade globalizada perseguida por Alexandre e levada a cabo pelos Romanos, depois com a universalização da igreja católica. Universalização nos termos do que depois chamaríamos de sociedade ocidental e mais recentemente de globalização.

Nossa sociedade contemporânea, herdeira dessas e de muitas outras tradições nesse longo processo, a partir do século XVIII e XIX, remetendo o sagrado ao campo da mitologia e da subjetividade, gradualmente assumiu uma explicação secular para as origens da Terra, do Universo, do homem e das demais espécies, basicamente evolucionista.

Em decorrência, em nossa sociedade disputam duas cosmovisões diametrais, a criacionista e a evolucionista. Essas tendências, que não são nada homogêneas como a designação pode favorecer entender, se referem à complexidade das crenças, religiões e dos ateísmos contemporâneos. O tema das origens do mundo, da vida e do homem permanece polarizado (em nossa sociedade) entre elas. Atualmente, a única forma de não estar assim é recusar, senão omitir ou reprimir, um dos polos em tensão.

Não pense o leitor, nem por um momento, que esta é uma questão do passado, ou que já foi resolvida pelos avanços da ciência desde o século XIX. Muito longe disso. O como devemos abordar e pensar a narrativa de nossas origens permanece, e tende a permanecer por longo tempo, exceto se estabelecido o contrário pela força ou intimidação, em um campo aberto. Para além da disputa da verdade sobre as origens, trata-se de disputas sobre a natureza e expectativas do presente.

Não pense, portanto, que essa polarização se esgote no campo da gênese do mundo físico e das espécies. Ao contrário, para além das tensões entre criacionismo e evolucionismo do mundo físico, com toda a gama de posições entre os extremos, o que essas narrativas colocam em questão é muito mais profundo: é a natureza e significação da consciência, da técnica, das formas de convívio social, das possibilidades da linguagem, da sensibilidade e da cognição, da fundamentação da ética e da transformação do mundo em recurso (e em decorrência da existência).

A crítica que se faz, há mais de um século, é que as narrativas tradicionais, como um todo, são míticas, transcendentes, e portanto basicamente subjetivas. E podem sê-lo sem dúvida, sem que com isso deixem de ser também acontecimentos históricos e memória (e estas duas não são a mesma) e, sobretudo, o que lhes confere sentido, experiência real do sagrado (e não apenas mito).

Obviamente, considerando seus pontos comuns e suas profundas divergências, as diversas cosmogonias não poderiam ser todas igualmente verdade. E para muitas sociedades antigas, não era a verdade o que estava em questão, mas o favor das forças naturais e sociais a partir de entidades sobrenaturais. Isso permitia tanto a subjugação de uma divindade sobre outra, conforme os próprios relatos já previam em seu âmbito, ou a coexistência entre elas.

Mas há um fator ainda essencial, que a noção moderna de divindade, sendo cética, dificulta perceber. A verdade não era a verdade do mundo físico por si só, deveria incluir para muitas sociedades antigas o sentido da existência no universo, um sentido que é tão moral e estético quanto racional, em um universo e natureza que não se esgotam nem se significam em si mesmos. O que foi peculiar aos hebreus foi reconhecer um único Deus verdadeiro, por sua revelação na história e na vida das pessoas a quem se revela.

Obviamente, essa é uma condição impensável para o mundo contemporâneo. No entanto, esse contemporâneo é ele mesmo uma construção. Não existiu sempre como tal, não se apresentou sempre como verdade evidente. A crítica que o racionalismo materialista desde o século XVIII e XIX impõe resulta em mudar os paradigmas de verificação e em remeter os antigos ao domínio do mítico. Por fim, entendendo que o recurso ao mítico decorre do medo e da ignorância diante de uma natureza que mais do que objetiva é assombrosa.

Esse engenhoso artifício explicativo tornou-se portanto a verdade de uma época muito recente. Mas isso não quer dizer que o campo imaginativo foi banido nessa aventura pela materialidade do mundo contemporâneo. Mesmo que negado por uma busca radical de objetividade e fisicalidade, persiste um campo imaginativo e representacional em construção que sustenta a articulação explanativa das provas documentais e materiais (lato senso) da ciência, como ossadas e restos de objetos técnicos em camadas geológicas (se o que nos ocupa é o homem) e, mais recentemente, os sequenciamentos genéticos.

A base do conhecimento atual sobre as origens cruza uma série de campos investigativos da ciência contemporânea, de evidências materiais e de hipóteses, das formas consideradas válidas para interpretá-los e pressupostos epistemológicos já mencionados. De modo que se essa objetividade pretendida traz evidentes resultados na manipulação do mundo, é essa condição mesma indício de campos imaginários e ideológicos em construção na construção desse olhar, que estabelecidos como válidos, organizam o mesmo olhar. Isto é, o que se vê, o que se escolhe, de onde se vê, em qual ponto é válido situar-se.

De um modo geral, a imagem difundida na ciência tem uma estrutura conceitual e representacional para além da questão do método: um começo aleatório que promove evolução (progresso, na formulação inicial desse pensamento) e contínua diferenciação e complexificação. O que, mais do que verdades, coloca em evidência a convergência histórica das teorias contemporâneas em seu campo social de constituição.

Isso se aplica às teorias da origem do Universo (o “Big Bang” de um ponto primordial cuja natureza ou processos desencadeadores não podem ser propostos) ou da vida, demandando e propondo tempos cósmicos e geológicos que se dilatam. Da mesma forma é então vista a origem do homem. Essa origem geralmente situa-se no paleolítico, que é datado entre 3 ou 2 milhões de anos atrás e 10.000 a. C., geralmente tendo como um marco de entre 50.000 e 30.000 anos atrás para que se tenha firmado a espécie Homo sapiens como espécie dominante. Nesse intercurso biológico, os artefatos e o domínio técnico são colocados a pari passu. O período seguinte, denominado neolítico, integra os relatos das origens por situar-se na pré-história, com testemunhos arqueológicos de grandes aldeias, indicando as primeiras cidades conhecidas.

Enquanto escrevia este artigo, foi divulgada a notícia de que a espécie Homo sapiens pode ser 100.000 anos mais antiga do que se pensava até então. Os restos de ossadas descobertas em 2004 foram datadas pelo método da termoluminescência [2], conforme notícia publicada na Exame de 07 de junho de 2017:



Antes da descoberta no sítio chamado Jebel Irhoud, localizado entre Marrakech e o litoral marroquino do Oceano Atlântico, os fósseis de Homo Sapiens mais antigos que a ciência conhecia eram de um sítio etíope chamado Omo Kibish–que se estima ter 195 mil anos. “Esta descoberta representa a origem da nossa espécie, trata-se do Homo sapiens mais velho já encontrado na África e em qualquer outro lugar”, explicou o francês Jean-Jacques Hublin, coautor da pesquisa e diretor do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck em Leipzig, na Alemanha [3].

Também o Jornal da USP deu atenção ao fato, relativizando um pouco a afirmação acima:



Em entrevista à Rádio USP, o professor Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, garante que não estamos diante de nenhuma revolução da história humana. Segundo ele, esses fósseis encontrados no Marrocos são conhecidos desde os anos 1960, mas careciam de uma datação mais exata. Não se podia afirmar a que espécies pertenciam, pois apresentavam características do Homo sapiens mas também as de uma espécie anterior, o Homo heidelbergensis. O cientista explica que os crânios de Homo sapiens mais antigos datam de 200 mil anos atrás e que foram encontrados na Etiópia. Faltava, no entanto, a ligação entre os Homo heidelbergensis  e os Homo sapiens. De modo que os fósseis encontrados agora no Marrocos, de cerca de 350 mil anos, se encaixam na transição evolutiva entre os heidelbergensis e os sapiens. “Então, a gente pode dizer que esses fósseis estão no lugar certo, com a morfologia certa e com a datação certa para servir de intermediários entre aquelas duas espécies”, diz o professor. Trata-se de um grande avanço, mas não se pode confundir essa descoberta a ponto de dizer que esses fósseis são os primeiros representantes da nossa espécie. “É uma descoberta de grande relevância, que está sendo vendida na mídia como se o Homo sapiens datasse de 350 mil anos, mas isso não é verdade.” [4]


Jebel Irhoud 1. Homo Sapiens, approx. 160,000 yrs old, Taken at the David H. Koch Hall of Human Origins at the Smithsonian Natural History Museum.


The Jebel Irhoud site in Morocco. Credit Shannon McPherron/Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology. Matéria de Carl Zimmer com o título Oldest Fossils of Homo Sapiens Found in Morocco, Altering History of Our Species, de junho de 2017. O local não indica restrição de uso da imagem.


Não há dúvida, o relato bíblico é totalmente distinto. Nem se poderia esperar que um relato como o da Bíblia (judaica e depois cristã) pretendesse apresentar um enunciado científico da criação. Até essa mera suposição seria uma irracionalidade. O que não implica que não seja, em sua essência, uma descrição dos acontecimentos. Vejamos qual sua proposta.

Reconhecendo uma condição informe inicial, cuja natureza também não é postulada, para além dela há Deus, que através de um ato de vontade criativa configura o universo conhecido e vivenciado, gradualmente. Mas ao contrário da teoria científica que postula um desdobramento da vida de formas primitivas e mínimas a um esgalhamento de diversificação e complexidade, aqui a origem da vida, embora posta em um sequenciamento, já vê de pronto uma diversidade coexistente de espécies e formas de vida a cada etapa, decorrente de um ato criador.

Da mesma forma a origem do homem, detalhada no segundo capítulo do Livro do Gênesis. Após a expulsão do jardim original, até o capítulo 12, os homens dispersam-se sobre a Terra, segundo duas ou três linhagens pelo menos. Adão, que vivia da coleta e com a expulsão do jardim vive da agricultura, vê seus descendentes dedicarem-se ao pastoreio e à agricultura, à construção de cidades, sendo pastores de gado, músicos e artífices de cobre e ferro. Estas as primeiras ocupações mencionadas. No entanto, a atenção aos artefatos não é o fulcro da história proposta, é um registro que não indica evolução mas afastamento de Deus, sobretudo, o que é estranho para nossa sociedade, não é na evolução técnica em si que há a definição da condição humana.

Essas duas narrativas podem ser subdivididas de vários modos, e são bem mais complexas do que é possível traduzir aqui, de modo resumido a pequenos parágrafos, que impedem mais do que indicar sumariamente a estrutura do relato. No entanto, de certo modo, partindo de concepções que mais do que opostas são de fato completamente distintas, ambas apresentam uma noção de tempo (não a mesma), e em ambas esse tempo está em mudança (não necessariamente evolução).

Como a ciência surge em um ambiente fortemente religioso, é compreensível que desde o século XVII e seguintes se intente um diálogo cada vez mais difícil entre ciência e religião, como na dita Idade Média se intentou em relação aos conhecimentos do mundo advindos da Antiguidade.

Com a afirmação da ciência e a distinção das esferas pública e privada, da subjetividade, da riqueza, da arte e da técnica, da ética e da produção, do conhecimento e da crença e assim por diante, a partir de meados do XVIII e principalmente do XIX a cisão entre religião e ciência é constituinte da condição contemporânea. Mas veja, a cisão não é apenas entre ciência e religião, é entre vários campos da experiência humana, e logo internamente à ciência, às instituições e à produção. Cisão que obviamente não é, nem pode ser plena, e inúmeros modos de mediação se fazem necessários.

Em decorrência desse afastamento, e das necessidades de mediação, muitos esforços foram e continuam sendo feitos para trazer a narrativa bíblica para uma convergência ou pelo menos um paralelo com a narrativa contemporânea. Pelo menos em um ponto as duas narrativas parecem concordar, a origem do homem em um mundo e uma biota já formados, mesmo que sujeitos a mudanças em ambas, embora não as mesmas.

O que coloca para ambas uma radical condição para a existência humana, e de relevantes consequências: a brevidade de nossa existência no mundo. No Gênesis, o homem é a última das criações de Deus no sexto dia, e seus acontecimentos, se tomados literalmente, nos situariam nos últimos momentos antes do entardecer do sexto dia. A origem pouco clara ou imprecisa, e progressiva dos homens da ciência, como vimos acima durando centenas de milhares de anos (e no limite de alguns milhões), também ela parece ocorrer (com uma liberdade metafórica minha) em um “jardim” (talvez uma savana), e certamente situa-se nos últimos momentos do tempo geológico do mundo até aqui.


A garganta de Olduvai. “Olduvaiense é o termo usado em arqueologia para se referir às primeiras indústrias líticas dos hominídeos durante o período Paleolítico Inferior, na África. A denominação refere ao sítio arqueológico mais importantes de tais indústrias: a Garganta de Olduvai, na Tanzânia. A descoberta científica, pelo outro lado, deve-se ao trabalho de Louis Leakey na década de 1930 e de 1940”


Pequena semelhança na verdade, mais o divertimento de propô-la, uma vez que nem o homem foi, para a ciência, criado por Deus, nem tão pouco o jardim. A condição contemporânea do homem é curiosa, esvaziado da dignidade de uma criação por Deus, tanto situa-se no acaso sem sentido que o iguala como espécie, porque toda sua dimensão é física, quanto é apresentado no termo dessa evolução, ao lado da flora e fauna modernas. Mas termo, e portanto ápice, em um sentido muito próprio. Sem significado na sua existência (na medida em que é aleatória, ocasional), ao contrário de outras espécies com as quais teria coevoluído, é capaz de desvendar os processos da natureza e subjugá-la pela técnica à sua vontade, ao seu interesse biológico e social.

Ou seja, a partir do século XIX, com a ausência de propósito, gradualmente não há limites para a técnica e a economia. Ainda que o conhecimento para tanto seja um acúmulo gradual, progressivo e não linear. Técnica que não é apenas manipulação da natureza, mas de um homem que sendo plenamente natureza é ele também plenamente objeto da finalidade técnica e econômica.

Podemos ver isso de outra forma ainda. A noção de eras se repete. Os tempos de Hesíodo [6] são 5 eras revelando de certo modo ciclos que se sucedem sem se repetir, mas encerrando-se com sua extinção. Em Agostinho de Hipona encontramos a narrativa bíblica, a história desde a criação, relida em 6 eras (como eram seis os dias da criação), que revelariam diferentes formas de diálogo entre a existência e a eternidade (ainda que a Bíblia não as proponha de fato). Na Geologia encontramos ao menos 4 éons, com inúmeras subdivisões, configurando ciclos de desenvolvimento específicos (pontuado por extinções) dentro de um contínuo temporal que parte do mais simples para o mais diverso e complexo.

No relato bíblico do Gênesis, a vida localiza-se em tempos bem mais recentes, no quinto e no sexto dias (embora as plantas já houvessem sido criadas no terceiro dia), e o homem nos últimos momentos dessa epopeia de criação ou de evolução. As eras geológicas representam um imensurável alargamento do tempo para além da escala humana. O Fanerozoico, representado como uma “explosão da vida”, teria durado apenas (!) 500 milhões de anos enquanto o Arqueano mais de 1 bilhão e o Proterozoico 2 bilhões de anos. Os hominídeos, entretanto, a coisa de apenas 4 milhões de anos, os humanos a coisa de duas centenas de milhares de anos somente. Daí em diante se noticia apenas extinção.

Não deixa de ser tentador, e sobretudo divertido, dividir os 3,85 bilhões de anos que marcam os éons geológicos do Arqueano até hoje por 641 milhões de anos (apenas 100 milhões a mais do que o Fanerozoico) e teríamos também 6 períodos. Divertido sem dúvida pela temperatura das questões, mas desnecessário, na verdade não adianta buscar muitas semelhanças, não são intercambiáveis esses períodos, não buscam as mesmas coisas, não esclarecem os mesmos problemas.

Não me refiro a uma incompatibilidade fatal entre a ciência, a religião e a fé, mas não devemos confundir os seus significados, nem inferir que sejam as mesmas coisas, ou que tratem e busquem das mesmas coisas. Vamos supor que haja pontos de contato possíveis. De qualquer forma, se os estabelecermos, devemos saber o quão tênue é o terreno em que nos movemos: tudo irá mudar, e as diferenças fundamentais (embora claramente existam) não estão nas narrativas em si, mas no significado existencial que nos trazem.

Não se pode, nem se deve, no meu entendimento, estabelecer correspondência entre o significado da Bíblia e o da ciência. Não que não se possa discuti-los e debatê-los (respeitosamente de preferência), mas não há razão de necessidade ou possibilidade de correspondência no atual estágio do que sabemos e do que não sabemos. Não vai aqui também qualquer interdição a que se o faça.

Não estou, de modo algum, dizendo que não se façam debates, pelo contrário, devem ser feitos; o esforço e busca de conhecimento não deve ser limitado por interdições arbitrárias, embora deva ser parametrizado internamente ou nas relações entre as possibilidades de explicação, por razões éticas. Mas também aqui há um problema, uma proposição que a ciência tem por mítica, tem sua ética em uma ordem da natureza que ultrapassa o homem: a ordem natural existe em uma ordem cósmica, decorrente de intencionalidade divina. Uma proposição que a religião teria por materialista, a da ciência, teria sua ética na matéria, incapaz de fornecê-la, ficando portanto em parte livre desse constrangimento, e em parte sujeita à relatividade instável da conveniência social. Façam-se os debates, mas não como forma de destruição, de vitória, de conquista, porque o que está em jogo é sutil, profundo, significativo.


Imagem constante de notícia acima indicada na revista Exame de 07 de junho de 2017 , com a legenda “A descoberta, feita em um sítio arqueológico chamado Jebel Irhoud, a 150 quilômetros a oeste de Marrakech (Planeta dos Macacos/Divulgação)”. Lançamento 14 de julho de 2017 (EUA), Direção: Matt Reeves. Reboot da franquia Planeta dos Macacos. Distribuidora: 20th Century Fox. A escolha da imagem, e o seu descolamento, até um pouco gratuito em relação à legenda e ao artigo na Exame evidencia uma presença midiática subjacente do debate evolucionista na sociedade de consumo tecnocientífica.


Observo apenas que uma dimensão essencial pode estar passando despercebida, como alguém que deseja enxergar o fundo do lago durante a tempestade, e talvez até enxugá-lo para expor sua evidência. Isso seria não perceber que a importância de ambos não se resume ao factual, porque buscam coisas distintas mesmo quando tratam das mesmas coisas; e ainda que houvesse uma correspondência narrativa possível entre elas, não seriam a mesma. O que estou questionando aqui não é a verdade histórica da Bíblia ou da ciência, o debate existe, como estou reconhecendo. Mas, como estudioso, interessa-me a visão de mundo que traduzem, o que significam, o que querem fazer significar.

A existência de espécies e “subespécies” no gênero Homo, com variedades extintas, e a duração dos acontecimentos, não é em si o que coloca em oposição fé e ciência. Aliás, seria até possível se considerar coincidências parciais, embora não se possa datar ou correlacionar o relato bíblico e as hipóteses científicas e, sobretudo, mesmo que não houvesse uma interdição em grande medida lógica, em grande media passional, não se possa atualmente conciliar criação e evolução.

Refiro-me, por exemplo, a uma hipótese de que, por um evento cataclísmico, teria havido na espécie Homo sapiens uma drástica redução da população, a algo entre menos de 1.000 ou 10.000 casais [7], com consequente perda genética, que os estudos dessa área parecem sugerir. A teoria da Catástrofe de Toba (proposta em 1998 por Stanley H. Ambrose), teria ocorrido a 70.000 ou 80.000 anos atrás, e explicaria a variação genética observada, presente também em outros animais.

Desse evento teriam sobrevivido apenas o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens que, normalmente se considera, teriam coexistido até 30.000 anos atrás, existindo ainda evidências de espécies de Homo erectus e Homo floresiensis. O relato bíblico também indica uma redução drástica, embora bem mais drástica, da diversidade e das linhagens humanas descritas no Gênesis, com redução a 8 pessoas, ou quatro casais. Em comum, por vias antagônicas, a teoria e a tradição apontam para uma redução radical da população humana em dado momento.

Que fique claro, obviamente não estou aqui a procurar justificar uma coisa com a outra, e não me interessa a possibilidade ou não de dialogarem, pois como disse não vejo necessidade, muito menos a possibilidade presentemente de que o façam. O que as afasta não são tanto essas apresentações, por hora irreconciliáveis. É o ponto em que o homem existe como tal, e o modo como isso veio a acontecer, ou seja, se resume-se em bios, ou se ocorre em uma relação entre a natureza e um mundo espiritual.

Visam, portanto, fazendo suas escolhas, a coisas diferentes, falam de coisas diferentes, pouco têm em comum mesmo quando têm algo em comum e não caminham para o mesmo lugar desde pelo menos o século XVIII. No entanto, um problema de verdade ainda assim persiste, e é fundamental. Para não dizer crítico. Intelectualmente, se pensarmos que são representações do mundo, abrem-nos um campo interessantíssimo de debate e significação sobre a própria existência.


Águas. Foto de Euler Sandeville Jr., 2010. Há um fundo no lago, e podemos vislumbrar um pouco através da transparência e difração da luz na água, mas não podemos devassar sua natureza em meio à tempestade.


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NOTAS


1 Este artigo foi desdobrado do artigo “O bisão na caverna (a aurora na neblina – artefatos e artifícios)”, quando de sua revisão publicada em junho de 2017, gerando um artigo inteiramente novo e retirando daquele este conteúdo, modificando a primeira versão daquele de fevereiro de 2016.

2 “A termoluminescência é uma técnica de datação baseada no facto de um mineral cristalino (quartzo, feldspato, etc.) aquecido a 400 °C emitir luz, e de a quantidade de luz emitida ser função do tempo durante o qual esse material esteve submetido a uma irradiação produzida por elementos radioactivos naturais, presentes no seu meio ambiente, e, em menor escala, aos raios cósmicos (solares ou galácticos). Esta técnica é utilizável em determinadas rochas e sobre terras cozidas ou cerâmicas, já que tanto umas como outras contêm quartzo, feldspato, etc. No caso das cerâmicas. a cozedura de fabrico apagou todos os vestígios das irradiações anteriores, mas a sua datação por termoluminescência só pode fazer-se depois de medida a radioactividade natural do mineral utilizado como matéria-prima, bem como a radioactividade do solo no qual esteve enterrado o objecto estudado. A termoluminescência apresenta a grande vantagem de poder ser medida a partir de um fragmento minúsculo (50 miligramas). Permite datar rochas ou objectos que tenham uma idade compreendida entre a época actual e algumas centenas de milhares de anos”. Disponível em histheory.tripod.com/methodos.html acesso em 21/06/2017.

3 Disponível em exame.abril.com.br/ciencia/homo-sapiens-e-100-mil-anos-mais-velho-do-que-se-pensava/ acesso em 15/06/2017.

4 Disponível em jornal.usp.br/atualidades/seria-o-homo-sapiens-mais-antigo-do-que-se-pensava/ acesso em 12/06/2017. A matéria atribui a divulgação da notícia em número da coneiturada revista nature de 08/06/2017.

5 “A garganta de Olduvai constitui um dos lugares mais importantes no leste da África em relação a sítios paleontológicos e arqueológicos pré-históricos olduvaienses e acheulenses. Os barrancos deste canhão também são conhecidos oficiosamente com o apelido de “berço da humanidade”. (…) O nível com restos arqueológicos mais antigo, conhecido como Camada I (Bed I), de cerca de 50 m de potência, registra assentamentos com uma indústria lítica muito primitiva, desenvolvida com lascas fabricadas com basalto e quartzo. Dado que este tipo de ferramentas foram descobertas pela primeira vez neste local, a etapa cultural na que se produziram foi denominada Olduvaiense por Mary Leakey. Os ossos achados nesta camada são de hominídeos primitivos como Paranthropus boisei e dos primeiros espécimes encontrados de Homo habilis. O teto da unidade foi datado em 1,8 Ma. Acima desta, encontra-se a Camada II, de 15 a 20 m de potência, que registra uma redução gradual do primitivo lago e importante atividade tectônica datada por volta de 1,6 Ma. As ferramentas de pedra começam a ser substituídas por bifaces mais sofisticados da indústria acheulense, que coexiste com um Olduvaiense evoluído. O final desta camada poderia ser datado por volta de 1,2 Ma. O conjunto das Camadas III e IV não supera os 11 m de espessura, e correspondem a sedimentos aluviais, já desaparecido o lago dos episódios precedentes. Seguem-se encontrado ferramentas acheulenses e olduvaienses evoluídas, atribuídas a Homo ergaster. A datação do teto da Camada IV não é bem definido, mas dados paleomagnéticos dos níveis posteriores indicam uma idade anterior a 1 Ma. Posteriormente formaram-se as camadas seguintes, que se denominaram Camadas Masek (Masek Beds, de 1 Ma a 400 000 anos) —com um período de importante atividade tectônica e vulcanismo entre 600 000 e 400 000 anos—, Camadas Ndutu (400 000 a 75 000 anos) e Camadas Naisiusiu (22 000 a 15 000 anos) e que contêm ferramentas da indústria lítica desenvolvida por Homo sapiens.” Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Garganta_de_Olduvai, acesso em 17/06/2017.

6 HESÍODO. Os trabalhos e os dias / Hesíodo ; edição, tradução, introdução e notas : Alessandro Rolim de Moura. Curitiba, PR : Segesta, 2012

7 Segundo pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_da_cat%C3%A1strofe_de_Toba, acesso em 17/06/2017.


como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “enxergar o fundo do lago para ver durante a tempestade… (sobre criacionismo e evolucionismo, disputas sobre as origens e o presente)“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.







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