SOBRE A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS
aurora 3500-64 a.C. 63-1054 d.C. 1054-1750
A AURORA NA NEBLINA: APRESENTAÇÃO DA SEÇÃO
por Euler Sandeville Jr.
Junho de 2017 (definição da seção março de 2016),
reorganização setembro de 2018.
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “A aurora na neblina: apresentação da seção“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.
Com a frase acima Élie Faure, em sua “A Arte Antiga” (1909) [2] , encerra o capítulo que trata da arte paleolítica e neolítica. Mas essa impressão deixada muita vezes é muda e silenciada hermeticamente no tempo, senão pelo ponto de onde a observamos hoje e a queremos ver como resposta para nossas suposições. Esta seção de “A Natureza e o Tempo (o Mundo)” trata desses tempos, dos quais restam apenas vestígios muito parciais e esparsos, que dão lugar a hipóteses muitas vezes mais imaginativas sobre esse passado distante do que de fato conclusões racionais. Hipóteses que, mais do que desvendar esses tempos, elucidam o modo como desejamos nos narrar e nos ver no mundo.
Seja bem vindo para adentrar a discussão sobre a longa antiguidade dos mundos.
A narrativa das origens mobilizou a imaginação e as certezas de grande parte das culturas, inclusive aquelas industriais das quais o que chamamos de contemporâneo emerge. O modo de estar lá, onde ninguém esteve, define muito do modo como pensamos e queremos estar onde estamos, e como vislumbramos nosso devir.
A Aurora na Neblina evidencia um tempo imerso no silêncio, em que procuramos recolocar em ordem um mundo passado coerente com nossa época, através de um imaginativo e progressivo dar voz a esses vestígios emudecidos do nosso mundo e da nossa própria natureza. É necessário lembrar, sobretudo, o esforço de imaginação e subordinação aos preceitos de uma época a que esses testemunhos misteriosos e instigantes do passado nos estimulam, ao termos a necessidade de condicionar suas explicações consoante aos nossos pressupostos intelectuais.
Antes da nossa, diversas sociedades constituíram ricas narrativas das origens. Obviamente não me refiro aqui aos testemunhos pré-históricos, mas a narrativas ancestrais como o Enuma Elish, Gilgamesh, o Livro do Gênesis, os Vedas e outros tantos, sem com isso querer igualar sua significação profunda. De modo algum são a mesma coisa e a chave do mítico, que modernamente com frequência lhes atribuímos, faz escapar-nos seus sentidos próprios e de uma longa duração. Apenas com isso desejo indicar como a busca de sentido atravessa “nossa” milenar jornada e nossa construção de artefatos materiais e intelectuais.
Situando-nos na contemplação do passado a partir do nosso peculiar e tão recente presente. Os exemplos a seguir podem ajudar-nos a perceber o rico campo imaginativo em que tanto estudamos quanto inventamos – e consumimos -, as nossas narrativas do passado. A interpretação das nossas origens é dependente dos complexos impasses, disputas e certezas ontológicos e conceituais que se constituíram na formação da mentalidade contemporânea remontando pelo menos aos séculos XVIII e XIX.
A descoberta no século XIX da arte parietal das cavernas suscitou grandes discussões. Isso porque não se coadunava facilmente, em um primeiro momento, com o pensamento acerca da evolução biológica e sociocultural do homem. Em 1868 um caçador chamado Modesto Cubillas tentava libertar seu cão que ficara preso nas fendas. Descobriu vestígios do que viria a ser uma das mais surpreendentes descobertas arqueológicas acerca do homem pré-histórico.
Marcelino Sanz de Sautuola (1831 — 1888), aficionado em paleontologia, desde 1876 visitou o local. Em 1878, buscando escavar restos de ossos e sílex como os que vira na Exposição Universal de Paris naquele mesmo ano, foi acompanhado de sua filha de 8 anos, Maria Sanz de Sautola y Escalante (1871-1946). A menina chegou a uma das “salas” interiores com as pinturas parietais, chamando o pai para ver as estranhas pinturas.
Sautola estava convencido de serem pré-históricas, mas totalmente inéditas em relação ao que se havia descoberto até então. Em decorrência, publicou em 1880 o Breves apontes sobre alguns objetos pré-históricos da província de Santander. Porém, para sua longa aflição, a descoberta era inteiramente inconsistente com as certezas da época sobre a evolução humana e das culturas e surpreendente demais para não ser senão uma produção muito posterior. Não se encaixava. Os maiores especialistas recusaram veementemente seu trabalho.
Sautola morreu em 1888 completamente desacreditado nos círculos científicos mais influentes. Entretanto, rapidamente novas descobertas forçavam a uma revisão das certezas, que viriam a exigir que se enquadrassem esses novos testemunhos que se multiplicavam em um quadro interpretativo, uma vez que se considerava agora comprovada a sua antiguidade. Os horizontes do “homem primitivo” se alargavam, bem como suas habilidades.
Em 1902 um dos maiores críticos de Sautola publicaria o artigo La grotte d’Altamira. Mea culpa d’un sceptique (A caverna de Altamira. Mea culpa de um cético). Infelizmente Sautola não usufruiu a reabilitação de suas ousadias. Mas a pequena Maria, já então com com 22 anos a essa altura, certamente tomou conhecimento da valorização da descoberta que fizera tão precocemente com seu pai, e que tantos dissabores lhe trouxe estar à frente da ciência que ajudava a construir.
Seja como for, 14 anos após a morte de Sautola, esse acervo magnífico passou a integrar de modo coerente toda a compreensão contemporânea das origens. Em 1985 Altamira foi declarada Patrimônio da Humanidade. Nós também nos inscrevemos nessa história:
Vejamos mais um exemplo, que nos fala desses tempos antigos, mas falam ainda mais de nós mesmos. A Caverna de Chauvet foi descoberta por acaso por espeleólogos amadores em 1994. Sua pintura parietal, de modo ainda mais surpreendente, chega a ser datada em cerca de 36.000 anos atrás. Observe com atenção as duas fotos a seguir, com a finalidade de nos reconhecermos nesses rostos do passado.
Sintamo-nos convidados a adentrar nesta seção a longa antiguidade dos mundos.
______________________ NOTAS1 Frase utilizada em certo mapa medieval. Era comum na cartografia medieval também a representação de dragões e criaturas sobrenaturais. No entanto, a frase também é utilizada por programadores. No Mozilla Firefox a frase aparece quando se digita “about:config” acessando o ambiente de programação do navegador.
2 FAURE, Élie [1873-1937]. A arte antiga [1909]. Trad Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1990
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “A aurora na neblina: apresentação da seção“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.