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SEUS PRÓPRIOS PASSOS?


Euler Sandeville Jr,
18/06/2018


Você já pensou se em alguns momentos em que se vê avançando na vida (ou recuando), para além das circunstâncias, possa estar ainda, em grande medida, mesmo com as transformações que o tempo traz, reproduzindo as mesmas forças anteriores?

Essa pergunta pode ter algo de assustador, pois em geral pensamos estar indo em frente e, se nos sentimos os mesmos nessa jornada, bem sabemos que mudamos, nos transformamos, por vezes ao ponto de esquecer de onde partimos, o que havia no coração no início da jornada. Pois bem, este é um lado da nossa experiência, mas há outros também.

Raramente nos percebemos repisando a nós mesmos, sem saber que o fazemos, seja quando pensamos olhar para a frente e progredir, seja quando pensamos regredir em algum momento. Repisar os passos, sem sabê-lo é algo por demais desafiador; não se refere tanto ao momento que vivemos, aos sentimentos das circunstâncias, mas a uma condição existencial na qual existimos e nos escapa. No limite, há um quê de destino desenhado por nosso próprio íntimo na existência, para além de todo o nosso dinamismo e transformação. Mais interessante, e dramático ou cômico, como queira: tando social quanto individualmente.

Se for assim, ainda que vejamos coisas novas, de fato nem sempre saímos muito do lugar, no que se refere ao campo de validades e de possibilidades. O nosso caminho, mesmo novo, ultrapassa as variações de nós mesmos? Contemplamos nossas próprias paisagens por vezes de outra forma, e novamente de outra, e outra, e ainda outra e ainda é apenas quase a mesma que nos foi dada de início? Claro, em muita coisa nos movemos, mas aqui estou pensando naquelas em que, não nos dando conta, nos repetimos. Elas também acontecem. Talvez jamais fique claro o porque desse repisar o caminho como um ciclo existencial que deseja se repetir entremeado de ritmos, de pulsos, pulsões, racionalizações, obstinações, arrazoados e narrativas.

É necessário ousadia para que isso não precise ser tudo. Para perceber que não é uma boa notícia continuarmos repisando nosso destino, apenas com suas variações temáticas. Não estamos presos em nós mesmos, podemos aprender, e para isso nos abrirmos a Deus e ao próximo é uma condição básica, porque sozinhos nos tornamos estultos, julgamos por nós mesmos, não somos contrariados (ou não aceitemos ser) e não aprendemos. Nos diz o livro de Provérbios (18.1,2): Aquele que vive isolado busca seu próprio desejo; insurge-se contra a verdadeira sabedoria. O tolo não toma prazer no entendimento, mas tão somente em revelar a sua opinião. Graças ao Criador dos céus e da terra e de tudo quanto há, nos foi dada a possibilidade de aprender, de crescer e, para isso, o viver entre outros, de coração aberto tanto quanto pleno, é uma grande oportunidade.

Ainda que reconhecendo que algumas marcas serão persistentes, pode ser importante superar esse repisar, escolher outro caminho, mesmo sabendo que levaremos uma incômoda consciência de nosso modo de coxear (Gênesis 32.27-29) no aprendizado de um novo caminhar e que a superação dos ciclos demande tempo e experiência. É necessário compreender tanto nossa finitude, quanto nossa incompletude, reconhecer os próprios limites, sempre bem mais evidentes aos outros do que a nós mesmos, como assim também pode se nos afigurar o nosso próximo.

Alguns exemplos podem ajudar a compreender essa condição humana em que existimos, que é tanto individual quanto social e que somos convidados a superar. Homens cuja intimidade com Deus foi notória, por isso mesmo revelam a própria humanidade e podemos perceber, entre outras coisas, esses processos a que me refiro, causados pelo medo, pela educação, pelo contexto, pela personalidade e ambições, e depois lançar um olhar para nós mesmos e vermos – se pudermos – o que repetimos e repisamos da nossa existência no “frigir dos ovos” do nosso cotidiano no decorrer do tempo.

O ensinamento bíblico dos trechos a seguir vai muito além do que estou indicando aqui. Porém, em nossa jornada espiritual, em nosso crescimento, enfrentaremos ao nosso próprio modo e contexto, desafios desse repisar os passos, seja na intimidade, seja na tecitura social.

Partiu Abraão dali para a terra do Negebe, e habitou entre Cades e Sur; e peregrinou em Gerar. E havendo Abraão dito de Sara, sua mulher: É minha irmã; enviou Abimeleque, rei de Gerar, e tomou a Sara. (…) Perguntou mais Abimeleque a Abraão: Com que intenção fizeste isto? Respondeu Abraão: Porque pensei: Certamente não há temor de Deus neste lugar; matar-me-ão por causa da minha mulher. Além disso ela é realmente minha irmã, filha de meu pai, ainda que não de minha mãe; e veio a ser minha mulher. Quando Deus me fez sair errante da casa de meu pai, eu lhe disse a ela: Esta é a graça que me farás: em todo lugar aonde formos, dize de mim: Ele é meu irmão. (Gênesis 20.1-13)

Mas esta não foi a primeira vez que Abraão agiu dessa forma. Anos antes, também quando houve fome na terra,

Ora, havia fome naquela terra; Abrão, pois, desceu ao Egito, para peregrinar ali, porquanto era grande a fome na terra. Quando ele estava prestes a entrar no Egito, disse a Sarai, sua mulher: Ora, bem sei que és mulher formosa à vista; e acontecerá que, quando os egípcios te virem, dirão: Esta é mulher dele. E me matarão a mim, mas a ti te guardarão em vida. Dize, peço-te, que és minha irmã, para que me vá bem por tua causa, e que viva a minha alma em atenção a ti. (Gênesis 12.10-13)

O exemplo talvez choque a alguns. Mas veja a força do hábito e o quanto partilhamos formas que não nos damos conta. Para compreender melhor, não nos coloquemos no lugar de Abraão, mas de seu filho Isaque. Veja que, como eles as deles, nós também ao nosso modo e contexto podemos estar repisando coisas, sem nos darmos conta, reproduzindo comportamentos que ficaram entranhados em nós, mesmo sem apercebermo-nos.

Sobreveio à terra uma fome, além da primeira, que ocorreu nos dias de Abraão. Por isso foi Isaque a Abimeleque, rei dos filisteus, em Gerar. (…) Assim habitou Isaque em Gerar. 7Então os homens do lugar perguntaram-lhe acerca de sua mulher, e ele respondeu: É minha irmã; porque temia dizer: É minha mulher; para que porventura, dizia ele, não me matassem os homens daquele lugar por amor de Rebeca; porque era ela formosa à vista. 8Ora, depois que ele se demorara ali muito tempo, Abimeleque, rei dos filisteus, olhou por uma janela, e viu, e eis que Isaque estava brincando com Rebeca, sua mulher. 9Então chamou Abimeleque a Isaque, e disse: Eis que na verdade é tua mulher; como pois disseste: E minha irmã? Respondeu-lhe Isaque: Porque eu dizia: Para que eu porventura não morra por sua causa. (Gênesis 26.1-9)

Talvez você ache que estes exemplos não são suficientes. Que seja um caso isolado. Mas se observarmos bem as narrativas bíblicas veremos que o assunto merece alguma consideração. Em Gênesis 24, Abraão já velho, envia seu servo mais antigo da casa para a terra de seus parentes na Mesopotâmia para trazer uma esposa para seu filho Isaque. Quando Rebeca chega, Isaque é tomado de grande paixão por sua beleza e a amou. Já velho, enganado por seu filho Jacó, sua mãe o envia à casa de seus parentes na Mesopotâmia. Chegando lá, ao ver Raquel, Jacó apaixona-se perdidamente.

Quando Jacó viu a Raquel, filha de Labão, irmão de sua mãe, e as ovelhas de Labão, irmão de sua mãe, chegou-se, revolveu a pedra da boca do poço e deu de beber às ovelhas de Labão, irmão de sua mãe. Então Jacó beijou a Raquel e, levantando a voz, chorou. E Jacó anunciou a Raquel que ele era irmão de seu pai, e que era filho de Rebeca. Raquel, pois foi correndo para anunciá-lo a, seu pai. Quando Labão ouviu essas novas de Jacó, filho de sua irmã, correu-lhe ao encontro, abraçou-o, beijou-o e o levou à sua casa. E Jacó relatou a Labão todas essas, coisas. Disse-lhe Labão: Verdadeiramente tu és meu osso e minha carne. E Jacó ficou com ele um mês inteiro. Depois perguntou Labão a Jacó: Por seres meu irmão hás de servir-me de graça? Declara-me, qual será o teu salário? Ora, Labão tinha duas filhas; o nome da mais velha era Léia, e o da mais moça Raquel. Léia tinha os olhos enfermos, enquanto que Raquel era formosa de porte e de semblante. Jacó, porquanto amava a Raquel, disse: Sete anos te servirei para ter a Raquel, tua filha mais moça. (Gênesis 29.10-18)

Aqui há uma assimetria e uma simetria em relação a Isaque. Impulsivo, Jacó não haje como agira o servo de Abraão, com prudência e sabedoria. Seu ímpeto lhe sairá caro e da rivalidade entre as duas esposas que assim irá receber, sairá também a rivalidade entre seus filhos, como da diferença de afetos entre Isaque e Rebeca por Esaú e Jacó decorreram muitos entreveros. Sua vida se arrastava agora sob o domínio de seu sogro, e ao cabo de certo tempo mais uma vez Jacó irá se colocar em fuga, como havia feito anos antes fugindo de seu irmão Esaú. Nessa fuga irá ver-se novamente face a face com seu irmão, e terá de enfrentar-se finalmente consigo e com o irmão. Um novo Jacó emergirá desse processo, com outra maturidade, mas verá entre seus filhos as mesmas aflições que havia experimentado em sua própria experiência, ainda que de outra forma.

Aqui alinhavei de modo muito rápido essas questões e certamente nem de leve toco a profundidade dessas Escrituras. No entanto, creio ser suficiente para chamar atenção para a pergunta inicial: tendem os humanos a repisar os próprios passos, mesmo sem o perceberem? Tendemos a repisar os nossos próprios passos, em circunstâncias e momentos diferentes, como um voltar sobre si mesmo? Esses momentos serão uma forma de repetir o vivido, ou uma oportunidade para reconhecer e aprender, para nessa consciência adquirir um coração mais sábio?

Nos diz Tiago (1.23,24):

Pois se alguém é ouvinte da palavra e não cumpridor, é semelhante a um homem que contempla no espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo e vai-se, e logo se esquece de como era. Aqui está o ensino, esse contemplar-se apaga-se ao ir-se pelo caminho, levando ao esquecimento de como era, do que aprendeu, de como se viu.

As mudanças são assim das circunstâncias, mas não um aprendizado que aprofunda a consciência.

Como Jacó, que depois de tanto fugir, e tornar a fugir, repisa o próprio caminho, até haver-se face a face com seu irmão. No caso de Jacó, sua experiência lhe serviu de aprendizagem, que o levou, a cabo de muito repetir-se, reconhecer de uma nova forma tanto a si quanto a seu irmão. Mas quantas vezes não reproduziu-se sem se dar conta de que apenas alongava o próprio caminho, permanecendo longe de seu destino? Pedro nos ensina, comparando a pessoa que torna-se como cega, vendo apenas o que é imediato, esquecendo-se do que superou, colocando-se na iminência de retornar sobre os próprios passos sem a possibilidade de compreendê-los:

E por isso mesmo vós, empregando toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência o domínio próprio, e ao domínio próprio a perseverança, e à perseverança a piedade, e à piedade a fraternidade, e à fraternidade o amor. Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, elas não vos deixarão ociosos nem infrutíferos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, vendo somente o que está perto, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados. (2 Pedro, 1.5-9)


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