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A BUSCA DO ESSENCIAL


Euler Sandeville Jr,
23 de outubro de 2017


O pássaro levanta voo. Deixa um rastro no ar. Logo se desfaz enquanto desaparece no azul. Assim são as minhas lembranças, ou talvez o que delas entendo. Por um momento várias cenas surgem, como se vários levantassem voo desenhando alinhamentos em “>” no ar e outros linhas formando um conjunto de rastros que, se só os observou uma vez, parecem ser ao acaso. O que os despertou?

Outras vezes um pássaro pousa longamente em um galho, como se me indagasse em meu contemplar do horizonte, voa para uma árvore vizinha e logo vem de longe outro, onde estava o primeiro. Eles parecem saber o que estão fazendo e então voam, levando minhas lembranças e ao mesmo tempo inscrevendo naquele momento do dia a presença delas. Nem todas as lembranças são narrativas, nem todas são imagéticas, é bom que se diga, muitas são um estado de alma que por vezes convida o vivido no viver, sem saber toda a extensão e sentimento que trazem.

Houve um momento em que percebi que algo havia mudado. Quando se é jovem, parece estar tudo à frente; não só isso, mas toda energia desse devir parece não ter fim. Porém, há um momento em que a consciência de que o que está à frente, se permanece sempre misterioso, já parece ser tanto quanto o que se guarda no vivido: há tanto o que lembrar quanto o que viver.

A energia vital, tão intensa sempre, já não parece poder vencer todo fim que se insinua mesmo distante, como se soubesse de algo mais dela mesma do que aquilo que sabe traduzir. Então, seria sábio observar os mais velhos, mas as camadas do tempo que não se viveu ainda, mesmo para o mais atento e empático observador, revelam-se apenas insinuações, jamais certeza. Nos olhos vívidos de quem já viveu há um pouco dos segredos do futuro de quem ainda viverá e um sabor de respostas acumuladas que não bastam.

Penso então em tudo o que vi até aqui. A cada passo, um outro passo. Alguma hesitação, alguma distração, algum ímpeto. Mas no caminho percorrido, no caminho que se está percorrendo, alguns desenhos se formam. Não necessariamente se encontram. Mas formam uma composição curiosa, um todo e muitos fragmentos. Já vi tanta coisa. Tantas coisas tão diferentes. Tantas situações imprevisíveis. Sim, muitas previsíveis.

Não se trata do que estudei. O que sei? Sabedoria para os Antigos não era informação ou conhecimento, muito menos destreza pragmática, era saber o que fazer com o que se tem, não com tudo o que se pode ter. Isso quer dizer que é uma forma de saber fazer conectada com o saber viver, em processo, com base em princípios. Na experiência de sua prática contam sim os desencontros desse aprendizado.

Eu me sinto um pouco como aquele homem, provavelmente mais velho, do Eclesiastes (Qoheleth), que na assembleia conta seu aprendizado ao longo da vida aos que o escutam. Ele diz:

Vaidade de vaidades, diz o Qoheleth [aquele que fala na assembleia]; vaidade de vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração vai-se, e outra geração vem, mas a terra permanece para sempre.

O que traduzimos por vaidade - hă·ḇêl - o é apenas na exegese do tradutor, mas não é exatamente esse o seu sentido, até onde entendo. A palavra parece significar vapor, um sopro, um hálito, a neblina como metáfora da brevidade da existência. A neblina na neblina. Esse hálito passageiro e vigoroso da vida. Esse continuar por gerações da existência.

Também eu, em meu desvario e na agonia de meus desencontros, entreguei-me aos vícios e ao delírio, investiguei e tateei a loucura e observei as diversas formas do convívio, da tensão humana, dos desejos, dos sonhos de realização, dos afetos que se entrelaçam e se negam, da construção de marcos que registram nossa passagem na paisagem. Como o Eclesiastes conclui, na minha forma livre de dizer, que o princípio da sabedoria é conhecer a Deus, discernir sua grandeza no passageiro da existência e passar a caminhar com Ele.

Nesse meu deambular, no mais das vezes perdido pelos caminhos, vi pessoas contraditórias prontas a se armar para não amar o que mutuamente as assustava. Medo de contágio, medo de constrição, defesa acima de tudo. De fato, olhando de longe eram até um pouco parecidas em seu zênite assustado. Temendo amar o que as machucava, deixavam de amar uma à outra. Nem se enxergavam, pois isso seria enxergar a si mesmas. Perdiam a razão de tanto ter razão. Antes de ter razão. O mundo estava pronto, solúvel, imediato. Já sabido. Já acontecido. O que, obviamente, não é real, está em construção, em acontecimento, em aprendizado a ser qualificado.

Vi também que não há vantagem em se entregar à loucura e à paixão, em explorar os limites dos desejos e da razão, porque as coisas que deveriam ser simples, muitas vezes o deixam de ser. Porque o que poderia ser íntegro e natural, pode tornar-se tortuoso e fragmentado. Porque os que não se perdem da possibilidade de discernir o caminho de volta da linha cruzada em risco de não voltar, podem perder-se no emaranhado da própria floresta a suprimir a consciência das diferenças dos dois lados das fronteiras em movimento.

Nesse ir e vir por onde não se precisa ir, nesse trânsito pelos limites, alguns sedutores, outros assombrosos, laceia-se o ser em suas possibilidades. No retorno ao ponto em que podemos contemplar o horizonte, em que podemos observar a miríade de formas, em que podemos repousar a a alma e compreender essa neblina da própria existência, passamos a ter de conviver com a força de vontade das escolhas que só então aprendemos a importância de serem feitas.

É uma experiẽncia grandiosa quando percebemos que no momento secreto em que buscamos a Deus, é porque Ele já nos chamava com amor, não porque lhe sejam indiferentes nossos caminhos ou porque o que fazemos não tenha consequências, mas porque está exatamente vendo para nós possibilidades melhores do que nós mesmos queremos ver.

Sim, sou cristão, e Ele me traz esperança e fé, paz e compreensão que não tinha imaginado possíveis. Acima de tudo, é o Altíssimo, o Criador de tudo, Aquele que sustenta tudo com seu poder e enche de vida a sua criação. Isso basta.

Reconheço que tornamos algumas lutas íntimas maiores do que precisariam ser. Por outro lado, compreendo melhor o poder e importância da força de vontade. Baudelaire dizia, embriague-se, de vinho ou de virtude. No fim, o que lhe interessava era o vinho de seus desejos, ele mesmo na forma de sua volúpia como um espelho de bronze prestes a perder o vislumbre de si ao qual se agarra. E Fernando Pessoa escreveu que Liberdade é ter um livro para ler e não ler. Quando era jovem, pensei que liberdade era simplesmente não querer ler e que virtude era a embriaguez da paixão, do vinho e da arte.

Atravessei a vida vagando nessas ilusões, como meu próprio Caronte conduzindo o barco da minha alma à deriva já sem saber das margens. Depois, compreendi que a liberdade não estava no negar, no não fazer, no recusar-se a fazer. Porque o livro talvez fosse a embriaguez de Fernando Pessoa. Liberdade era não ser escravo dos próprios desejos, da própria ânsia de saber, da própria imagem de si que aprisiona as possibilidades nos atos esperados, nas exterioridades, nas sofisticações da alma sensível ou sua recusa.

Nem sempre quando o vinho brilha na luz translúcida do desatino o melhor é prová-lo. As lutas íntimas nem sempre são criativas e não há virtude inerente a elas. Ao contrário, sua superação pode desvendar a beleza procurada.

Aprendi que o hábito adquirido no desejo que sempre se satisfaz é como uma cilada que devora parte importante da essência do que somos. Vale a pena lutar ainda quando nossa fraqueza e imperfeição sejam evidentes e, de fato, serão. Mas assim também compreendo melhor nessa aventura de ser breve neblina (a nossa existência), ainda que não isento de dissabor, nossa humanidade.

Nossa vida como uma neblina, entre translúcida e opaca, imersa em uma neblina ou vapor também passageiro mas imenso em que existimos (a existência de todos nós). A neblina na neblina. Vi também que a luz do dia se difunde por toda a neblina e percebi que é como o hálito do Criador animando todas as coisas com vida; essa luz que podemos ver difusa nos indica sua presença, podemos senti-lo, podemos percebê-lo, mas não podemos vê-lo senão pela fé, embora sua luz nos toque.

Aprendo que ver através da neblina exige tempo, calma, e que, se a existência é como a metáfora da neblina que se dissipa, esse é o tempo do aprendizado que temos e podemos ter. Aprendo que outros tempos mais longos e duradouros existem, que tocamos sutilmente através dessa neblina, mas a própria neblina em seu destino de dissipar-se ensina que a existência que conhecemos é apenas uma parte acasulada na eternidade. Que coisa é essa que guardamos nesse casulo do coração e da nossa existência e um dia terá a forma que geramos?

Em breve as coisas serão vistas como são. Ainda não, por ora, o vapor na neblina. A força da vida e a fragilidade da existência. A fraqueza e a força de vontade. O socorro que vem do Alto. A oportunidade a experiência e o aprendizado. A possibilidade de estar com Ele, em Cristo, pela fé, enquanto peregrino por estes vales e montanhas passageiros a caminho do que é eterno.


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