Este texto é uma reflexão sobre o trecho inicial da Bíblia entre os capítulos 4.1 e 7.16. Depois de relatar a criação de todas as coisas nos capítulos 1 e 2, o Livro do Gênesis narra entre os capítulos 3 e 7 a história da humanidade em uma primeira fase, que se encerra com o dilúvio. Esse trecho começa com um casal, Adão e Eva, e termina com a humanidade reduzida a uma única família, a de Noé, após o dilúvio. O dilúvio é narrado nos capítulos 7 e 8, embora já fosse anunciado a partir de Gênesis 6.5. Os capítulos de 9 a 11 narram após o dilúvio e a partir do 12 começa a história de Abraão e de seus descendentes.
Entre os capítulos 4 e 7, que nos ocupam aqui, lemos sobre uma primeira fase da relação da humanidade com Deus e de uns com os outros. São apenas 4 capítulos. Do mesmo modo como vemos que esses capítulos constatam a maldade, vemos também que anunciam a esperança. Esses capítulos nos falam de tempos que são misteriosos, de alguns acontecimentos enigmáticos difíceis de explicar e entender, que escapam ao que esperamos e que antecedem à organização do mundo que conhecemos.
É muito importante reparar que o homem, na narrativa bíblica, não foi criado para fazer alguma vontade caprichosa de criaturas celestiais, ou para fazer o trabalho deles em suas disputas e verdadeiras guerras envolvendo deuses maiores e menores, e muito menos para adorá-los. Este é o relato que está nas narrativas mesopotâmicas, que algumas vezes têm pontos de contato com a narrativa bíblica, mas são profundamente distintos.
Mesmo nas Escrituras, o homem não foi criado para adorar a Deus. Adorá-lo é uma consequência inevitável de contemplá-lo, de viver em sua presença ainda quando pela fé. O relato bíblico é radicalmente diferente do que lemos naquelas narrativas. Segundo as Escrituras, o homem e a mulher foram criados para viver inicialmente em um mundo perfeito, em comunhão com Deus, em relação direta com Ele, zelando pela criação. Essa atribuição é extraordinária, ainda mais quando atentamos em Gênesis 1 o cuidado carinhoso de Deus ao criar cada coisa, e sua apreciação de cada conjunto que passa a existir nesse cosmo sucessivamente organizado. Gênesis 1.26-31 é portanto uma proposta de afeto e confiança ao homem, bem como em sua possibilidade de crescimento, tal como lemos nos capítulos 1 e 2.
O capítulo 3 do Gênesis, dos versos 1 ao 8, mostra o afastamento desse primeiro casal, e prossegue com um chamamento deles por Deus (“Iahweh Deus chamou o homem…”, Gênesis 3.9, BJ). Entre os versos 9 e 24 encontramos o tratamento dado por Deus às consequências do pecado naquele primeiro momento, algumas ações de restauração e promessas futuras, e um juízo que reorganiza o mundo até então criado.
Ainda no capítulo 3 Deus deixa saber que haverá uma constante luta entre o bem e o mal para a humanidade. Uma zona de conflito estabelecida. O juízo aqui não é dirigido à mulher, mas à serpente. No entanto, refere-se à descendência da mulher, indicando um acontecimento futuro. O trecho, bem conhecido, está em Gênesis 3.15 (ARA), quando Deus julga a serpente e anuncia que esta ferirá, mas será esmagada:
Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente [ou sua descendência, ou ainda semente]. Este te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar.
O que acontece a partir do capítulo 3 é a quebra sucessiva dessa intimidade, e o afastamento de Deus caminha a passo com a violência entre os homens já a partir do capítulo 4, com Caim e Lameque. Daí até o capítulo 6 o texto nos mostra uma humanidade que havia se multiplicado sobre a terra, mas se corrompido intensamente em seus caminhos. Deus seleciona então um único homem descendente de Adão, Noé, através de quem garante a continuidade dos humanos, mas temos aqui um segundo juízo sobre sobre a humanidade e a natureza, com o dilúvio.
Portanto, podemos demarcar esse trecho entre o capítulo 3 e o 7 (na verdade 7.16) com duas severas decisões e juízos de Deus, que reorganizam por duas vezes a criação em função do pecado do homem:
O SENHOR Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, (…). (Gênesis 3.23)
E Iahweh fechou a porta por fora (Gênesis 7.16, BJ)
Terrível coisa ler que Deus fechou a porta. Antes de observarmos em maiores detalhes os acontecimentos narrados entre os capítulos 4 e 7 que resumem essa primeira história da humanidade, é necessário perceber que, para além dos dois juízos, Deus aponta sucessivamente para o futuro, e estabelece alianças.
A primeira não é tão clara, porque o texto parece colocar o homem em um caminho sem amplitude, expulso da presença divina. Mas a razão de fazê-lo é para sua preservação (Gênesis 3.22-24). O trecho acima citado de 3.15, pode ter um caráter messiânico, apontando para uma redenção futura, sobretudo se entendermos como se referindo a um descendente (tradução possível) e não descendência. Ainda assim há aqui uma referência a um desenrolar futuro.
No capítulo 3 lemos ainda sobre a morte de um animal (3.20), para fazer vestimentas de pele. Quem fez as túnicas de pele não foi Adão, que já havia tentado ocultar sem sucesso a consciência de sua desobediência e presunção lançando mão de uma folha de figueira (3.7). Quem faz as vestes é o próprio Senhor. Sem entrarmos em considerações de natureza teológica, o trecho deixa claro o custo do tratamento do pecado. Está nos ensinando que o homem não pode cobrir seu próprio pecado, é necessária a intervenção de Deus para tanto. Em Gênesis 3 quem sacrifica o animal para fazer as vestes é o próprio Deus. Mas depois de expulso da Sua presença, em Gênesis 4.4, já encontramos Abel oferecendo um sacrifício. O segundo o sacrifício relatado nas Escrituras foi oferecido por Noé após o dilúvio (Gênesis 8.20).
A discussão do sentido desses sacrifícios, ainda mais à luz da Lei e depois do Novo Testamento, merece um estudo à parte. Por ora, basta percebermos que Abel e Noé ofereceram algo precioso, custoso para eles. A diferença fundamental entre o sacrifício oferecido por Abel e a oferta de Caim não está no sacrifício ritual, embora isto esteja implicado, mas no coração, no modo como o faziam.
Após o dilúvio Deus claramente faz uma aliança com a humanidade, com uma promessa de restauração e algumas condições. Aqui temos uma primeira lei e uma primeira aliança de Deus com os homens. O capítulo 9, mesmo reconhecendo em 8.21 que “os desígnios do coração do homem são maus”, começa com a restauração da benção perdida: “Deus abençoou Noé e seus filhos e disse ”Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra” (9.1, BJ). É a renovação da mesma benção dada a Adão e Eva (1.28). O capítulo 9 prossegue com a Aliança e seus termos:
Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca como todos os animais da terra. Estabeleço a minha aliança convosco: (…) (Gênesis 9.9-10).
Finalmente, nesta introdução, além das marcações já apresentadas, é necessário perceber mais um marco essencial na narrativa entre os capítulos 3 e 7 do Gênesis. Lendo esses capítulos logo após o pecado de Adão, percebemos que podem ser resumidos deste modo (além do que acabamos de ler acima em 8.21):
a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração (Gênesis 6.5)
a terra se perverteu diante de Deus e encheu-se da violência (Gênesis 6.11)
Isso em um contexto de dificuldades de subsistência grandes (Gênesis 3.17, 4.11), mas também de desenvolvimento material e cultural (Gênesis 4.17-22). Talvez os homens daquele tempo, na medida em que se multiplicavam e diversificavam seus desenvolvimentos técnicos e sociais, pensassem e argumentassem: “Deus já nos afastou de um lugar perfeito com a desobediência de nossos antepassados e nos submeteu ao trabalho duro; nada melhor do que agora seguirmos nossos caminhos e realizarmos nossos desejos, pois é o que nos resta”.
Mas esta não é toda a leitura necessária. De pouco adianta focarmos apenas na desolação da maldade, se não entendermos que nossas opções podem nos conduzir progressivamente a esse caminho, mas também podem nos conduzir a um outro muito diferente. O leitor atento não aceitará essa redução da Escritura ao juízo. De modo que é igualmente verdade que podemos resumir o mesmo período de um modo totalmente distinto:
Ora, Iahweh agradou-se de Abel (Gênesis 4.4, BJ).
Enós, que foi o primeiro a invocar o nome de Iahweh (Gênesis 4.26, BJ).
Henoc andou com Deus (Gênesis 5.21, BJ).
Noé era um homem justo e íntegro entre seus contemporâneos, e andava com Deus (Gênesis 6.9, BJ).
O problema hoje não é diferente em sua essência do que enfrentavam os homens naqueles tempos. Claro, as técnicas são outras, as formas sociais, os saberes e artes são totalmente distintos. Mas Deus não muda, e do mesmo modo que tivemos Caim e Lameque e muitos outros cujos nomes não sabemos, até o ponto em que nos tempos de Noé não se achava mais a justiça nem o temor de Deus nem o amor a Ele, naquele mesmo tempo viveram também Abel, Enoque, Noé, e muitos outros cujos nomes não ficaram registrados.
Olhando agora o conjunto desses relatos (Gênesis 4 a 7), podemos indicar alguns princípios das Escrituras, decisivos, porque envolvem nosso viver concreto e a nossa transparência diante de Deus. Primeiro, fica claro em todo o trecho que Deus olha o coração (Gênesis 4.4, 4.7, 6.5), está disposto à misericórdia (Gênesis 4.15, 4.25), mas exerce juízo sobre a impiedade (Gênesis 3.14-24, 4.9-15, 6.3 e seguintes). Vemos também que Deus, a cada momento provê livramento (Gênesis 3.15, 21, 22; 4.25; 6.8). Haveria muito mais a se dizer dos versos aqui indicados, e o faremos em outros ensaios se assim Deus nos permitir.
TRADUÇÕES DAS ESCRITURAS UTILIZADAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1a. Edição, 11a. Reimpressão. São Paulo: Paulus, 2016.
BÍBLIA. Edição Almeida Revisada E Corrigida. Sociedade Bíblica Do Brasil, on line, São Paulo, s/d. Disponível em http://www.sbb.org.br/conteudo-interativo/pesquisa-da-biblia/ acesso entre 09 de setembro e 02 de outubro de 2017.
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