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ESTUDOS NA BÍBLIA HEBRAICA (ANTIGO TESTAMENTO):

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INTRODUÇÃO AO LIVRO DE GÊNESIS


Euler Sandeville Jr, 18 de setembro de 2022


Normalmente, os livros modernos estão divididos em capítulos e subtópicos, Não era assim com a literatura bíblica. Essa divisão não existe no texto original. Como vimos na primeira seção, “Introdução à Bíblia”, essa divisão do texto - que até então era um contínuo - começa na Idade Média, com a divisão em capítulos, e depois na era moderna com a subdivisão em versículos.

As edições modernas da Bíblia ainda criaram outras subdivisões, como a proposição de se identificar uma estrutura narrativa, dividindo-a em partes e ao dar subtítulos aos pequenos trechos narrativos que integram cada parte principal proposta. Isso não faz parte das Escrituras, mas ajuda nossa aproximação com os textos, ao possibilitar ter uma visão geral de como sua narrativa se organiza. O risco desse procedimento é esquecer que o texto original é contínuo e que isso tem apenas uma função didática, podendo significar já uma forma interpretativa da leitura do livro. Por isso, esse recurso não deve nos afastar da leitura e compreensão integrada do livro e de nossa contínua e reverente indagação ao próprio texto e dos significados e ritmos que nos propõe à leitura.

Ainda assim, pode ser importante esse procedimento para efeito de demarcação da leitura e do estudo. Nesse sentido, frequentemente o livro do Gênesis é dividido em duas partes, geralmente consideradas do capítulo 1 ao 11 e do 12 ao 50. A Bíblia de Jerusalém, por exemplo, propõe uma divisão em três partes, sendo a última, a História de José, indo do capítulo 37 ao 50. Não há nada de errado, ou de obrigatório, nessas diferentes alternativas de divisão do livro, desde que saibamos que elas orientam nossa leitura e que devemos, como foi dito, ter em mente a continuidade do texto. Na verdade, um pouco mais do que isso, como veremos adiante, pois há um forte entrelaçamento do texto para além de sua subdivisão em partes. Justamente por isso, independentemente de qual parte estejamos lendo, perceberemos a interdependência que integra a proposta narrativa do todo do livro.

Vou adotar aqui, de início, a organização do conteúdo de leitura em duas partes. A primeira, até o capítulo 11, narra a origem de todas as coisas, dos povos e instituições humanas. Vejamos uma estrutura narrativa e temática possível para essa possível primeira parte:

  • O pequeno e surpreendente relato de 1.1 a 2.4 narra a geração do céu, da terra e dos ceres vivos. Revela um Deus cuidadoso e criador, que passo a passo dá ordem ao mundo visível, pleno de sabedoria, ensinamentos e beleza. O versículo 2.4 com 2.5 faz um vínculo de passagem para a próxima parte do ensino inicial em Gênesis.
  • O relato da criação é aprofundado no capítulo 2 e 3, o qual introduz a questão do mal nesse mundo criado. Assim, de 2.1 a 4.26 e de 4.24 a 5.32, o Gênesis nos apresenta a relação de Deus com os homens e destes entre si, com a criação e com Deus, a origem de suas primeiras instituições e questões morais ou éticas, com suas consequências. O capítulo 5 está a contrapelo do capítulo 4, como que retomando a narrativa de Gênesis 2.4 e 3.15, que terão grande importância depois. Podemos observar que Gênesis 1.1 e 3.15 e seus desdobramentos parecem ser uma das chaves para boa parte da narrativa bíblica subsequente.
  • Gênesis 5.28-32 novamente é um ponto de transição para o restante do relato até Abrão. O capítulo 6 dá origem à narrativa de Noé até o capítulo 9, com as gerações de Noé até o capítulo 11 (o núcleo da narrativa do dilúvio está concentrada nos capítulos 7 e 8 (Noé recebe a instrução de construir a arca em 6.13 e entra na arca em 7.1, saindo apenas em 8.18).

A partir do capítulo 12 lemos a narrativa da vida dos patriarcas peregrinando na ambiência do chamado Crescente Fértil. Essa segunda parte do livro de Gênesis já se encontra a relativo passo com a cronologia da Antiguidade e termina no Egito, encerrando-se o capítulo com uma frase que repete outras no livro e que tem início em Gênesis 3 (e o puseram em um caixão no Egito). Essa segunda parte do livro de Gênesis (12-50) é plena de dramas e indagações profundamente humanos, de grande lição prática. Essa parte do livro pode ser vista como quatro ciclos narrativos principais desde Abrão e da peregrinação dele e de seus descendentes na terra de Canaã.

  • Do capítulo 12, começando com o chamado de Abrão, ao 25.10 temos as peregrinações de Abrão e a promessa que é também chave para todo o entendimento das Escrituras a partir delas.
  • De 25.11 ao 28.9 temos a história de Isaque e o dos problemas entre seus filhos que culminam com a separação de Esaú e Jacó, mas a morte de Isaque é narrada apenas em 35.28, 29.
  • De 28.10 a 35 e 37.1 temos as peregrinações de Jacó e seus filhos, mas 37.1 já faz a transição nos versos seguintes para as peregrinações de José. No entanto, a morte de Jacó só vai ocorrer em 49,33 e há um entrelaçamento de sua história com a de seus filhos até o final do livro.
  • De 37.2 a 50.26 temos a vida de José e como as contrariedades que vive levam à preservação da vida de seus irmãos e seus clãs.

A estratégia comum da divisão do texto, como veremos adiante, pode ser útil mas não é necessariamente a melhor forma de se entender a estrutura do livro, embora proporcione uma boa primeira aproximação. O problema está se a divisão em partes nos der a impressão equivocada de que o livro está segmentado nessas partes, como um manual moderno, mas os textos bíblicos têm algo em torno de 2.000 a 3.000 anos ou mais e uma complexidade literária espantosa. O recurso da divisão em partes é apenas uma forma didática de nos localizarmos inicialmente em suas narrativas, que revelam uma complexidade muito mais entrelaçada do que essas partes deixam entrever, porém, devemos observar melhor outros aspectos, não lineares, comuns à narrativa bíblica.

Se olharmos cada parte ou bloco narrativo com atenção, perceberemos que, não raro, ao se concluir aquele bloco há um trecho de transição para o seguinte, ou com outro trecho do livro, independente de sua proximidade temporal ou espacial na narrativa. Devemos observar ainda que o livro de Gênesis inegavelmente forma um conjunto com continuação imediata com o livro do Êxodo. O livro do Gênesis, que começou com a criação e a vida, termina com uma frase inesperada: “o embalsamaram e o puderam em um caixão no Egito”. Essa frase faz conexão com outras dentro do livro desde Gênesis 3, com uma ocorrência nefasta em 4.8 e 23, e com um estribilho que atravessa todo a Bíblia Hebraica, anunciado pela primeira vez em Gênesis 5.5 a respeito de Adão. A mesma frase, entretanto, também já faz a conexão com o livro de Êxodo, sem interrupção narrativa, apesar desse final inquietante entre Gênesis e o início do Ẽxodo unir, praticamente sem solução de continuidade, o intervalo de 400 anos, quando os descendentes de Abrão e Jacó são oprimidos no Egito, sem que houvessem retornado a Canaã. Justamente esse ciclo final do Gênesis, no Egito (a partir do capítulo 39) continua até o capitulo 15 do livro do Êxodo, quando se inicia a Páscoa e o ciclo do deserto, no qual Deus faz uma nova Aliança, agora com Israel, através de Moisés.

O livro todo do Gênesis apresenta-se como uma história de Deus com os homens, de seus ensinos para nós e de nossas buscas, oportunidades, descaminhos, liberdade de escolha e esperanças. Um leitor familiarizado com as Escrituras logo perceberá ainda que muitos desses ensinos são abundantemente revisitados ou utilizados para outros ensinos em muitos outros trechos das Escrituras, com seu emprego para aplicação em ensinos acerca de questões espirituais e da vida social e pessoal.

Na verdade, o livro é muito mais um todo, em que essas narrativas se entrelaçam para nos mostrar a origem do mundo, do ser humano, do mal no mundo e da ação redentora de Deus nesse mundo. Daí porque é comum que cada uma dessas “partes” já contenha a chamada para a próxima, que surge como desdobramento, o que também pode acontecer em blocos menores de narrativas que podem vir entremeadas no texto. Esse entrelaçamento, que talvez se deva a uma oralidade preservada no relato bíblico, mostra-se, a par de sua suspensão de qualquer linearidade narrativa, coerente com o argumento central. São, nesse ritmo peculiar, indispensáveis para o fio condutor da narrativa, ou, em outros casos, trazem uma nova luz aos acontecimentos, embora criem alguma ruptura no fluxo esperado. Veremos tudo isso na leitura do texto, mas deixemos alguns exemplos aqui.

Um exemplo poderia ser a narrativa da criação, afirmada em 1.1, apresentada em ciclos entre 1.3 e 2.4 (que muitos tradutores unificam com o relato que segue no capítulo 2, mas me parece mais pertinente como conclusão do relato do capítulo 1, embora possa conectar com o relato central do capítulo 2). O relato da criação no capítulo 1 poderia ser continuado indo-se diretamente de 2.4 à genealogia de Adão até Noé no capítulo 5.1, mas isso omitiria a descendência de Caim no capítulo 4, com ensinos fundamentais para se entender a perspectiva e o drama humano na existência. Desse modo, todo o enredo que converge na salvação da humanidade através de Noé e sua família ficaria prejudicado sem o drama moral vivido entre 2.5 e 4.24, sendo que 4.25 e 26 já anunciam todo o desdobramento do capítulo seguinte. A narrativa parece ser interrompida em 6.1-4, mas 5.32 já é, como 2.5 e 4.25,26 a introdução dos episódios dramáticos que se seguem, unificando as duas descendências de Adão, por Caim e Sete, nesses acontecimentos, mas dando continuidade apenas a uma delas, partir de um único descendente, que retoma a criação da humanidade em 1.26,27 e 3.15 e 20.

Da mesma forma, a tensão entre luz e trevas no capítulo 1, é acompanhada de outras, como por exemplo, céu/terra, dia/noite, terra/água, o que não respira e o que respira, que é abençoado (a tensão entre benção e maldição só aparece no capítulo 3 e desdobra-se até Apocalipse). Esses mesmos ensinos são revisitados ao longo de toda a Escritura com sentidos diversos. Em Gênesis 1 essa tensão é sempre apresentada positivamente, mas adquire a condição de um conflito moral no capítulo 3 e 4. Assim, a luz e as trevas vão representar, já no evangelho de João, por exemplo, dois caminhos e escolhas, a luz que é Deus e Cristo e a prática de seu ensino centrado no amor, ou as trevas, que encobrem as obras más e o egoísmo e representam assim o afastamento da presença de Deus, onde está toda a vida. O ensino sobre dois caminhos é muito utilizado por Jesus, para nos ensinar sobre nossas escolhas, e atravessa toda a Escritura. Aliás, a ideia de movimento, inerente ao caminho, ao caminhar, é central desde o primeiro capítulo, mas torna-se um ponto de muitos ensinos diferentes ao longo das Escrituras. Em Gênesis lemos que Enoque andou com Deus (5.22) e que a arca vagava sobre as águas do juízo sobre aquela geração e o primeiro Salmo tem em seu tema o caminho do justo e o caminho do mal. Por outro lado, em 4.16, Caim se afasta da presença do Senhor.

Daí necessidade de escolha, que já é posta já em Gênesis 2, cujas consequências de uma má escolha são desde o capítulo 3, em que o homem se esconde (move-se para isso, 3.8) da presença de Deus e este lhe chama, prenunciando um contínuo chamar de Deus a todas as gerações, como em 4.6 e 9. Expulso do paraíso, a humanidade é posta em movimento pela terra. Quem escolhemos é o segredo dos caminhos. Mas não só isso, veremos no livro de Gênesis que, a despeito dos acertos ou erros humanos, mesmo em situações extremamente críticas, nosso destino não está escondido aos olhos de Deus. Assim, a ordem sede fecundos e multiplicai-vos se repete após o dilúvio, e há uma linha genealógica que vai cumprindo o disposto em 3.15, mas se depara com nossa impossibilidade de realizá-la, como em Abrão, já velho e Sara estéril, como também foram Rebeca e Raquel, ensinando-nos a compreender tanto a beleza e insuficiência de nossa fragilidade e de nossa condição humana, quanto o milagre para a realização de nossas esperanças e das promessas de Deus que ultrapassa nossas possibilidades, mas encontram atenção e realização em Deus.

Portanto, se o percorrer a história, a dimensão coletiva de nossa existência e o nosso próprio percurso, são evidenciados na narrativa de Gênesis, não bastam nossas escolhas boas ou ruins, embora seja nossa responsabilidade escolhê-las, como já fica claro em Gênesis 3 e 4 ou mesmo 6.22. Elas apontam para a graça e a ação de Deus. Adão e Eva não conseguem encobrir sua vergonha escondendo-se e manipulando por sua habilidade as coisas criadas (3.7,8), é Deus que intervém (3.9-21), prenunciando a dura compreensão das consequências de nossos atos além de nós mesmos (3.15, 18, 21). Essa condição de uma história que aponta continuamente para a redenção é particularmente interessante quando observamos o início do ato criador de Deus. quando lemos que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Sem aprofundar esse trecho específico, vemos que a arca com a família de Noé vagava sobre as águas. A imagem não é exatamente a mesma, e as palavras certamente são outras, como podemos ver em outro momento. Mas os sobreviventes dessa primeira fase da criação construíram uma arca segundo a orientação dada por Deus, e é essa arca que os abriga na incerteza das águas. Também, já em Êxodo, Moisés será salvo do meio das águas do Nilo, prenunciando a salvação de um povo para uma nova Aliança através da Páscoa e da travessia das águas. O pairar de Deus em 1.2 produz a vida (1.3, 11 e seguintes); o vagar humano sobre as águas não tem controle nem entendimento mais amplo das situações, embora tenha consciência: é preservado pela ação de Deus, que lhe antevê uma redenção, como veremos também na bela e emocionada declaração de José a seus irmãos: “Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos aborreçais por me haverdes vendido para cá; porque para preservar vida é que Deus me enviou adiante de vós.” (45.5)

Portanto, uma outra forma de entender o livro é como um encadeamento de narrativas entrelaçadas com lições específicas, quase como pequenos conjuntos de textos ou conjuntos um pouco maiores que articulam episódios específicos, que podem ser vistos como completos embora entremeados e altamente significativos no conjunto no qual são desenrolados. A essência de cada trecho e dos conjuntos que vamos lendo são ensinos que se desdobram não apenas nesse livro, mas pelo conjunto das Escrituras. Daí porque seu conteúdo é frequentemente revisitado em outros livros, gerando novos ensinos. Cada uma dessas narrativas enraíza-se fortemente no vivido, nas questões humanas diante de sua busca de significados, de sobrevivência, de incertezas, de escolhas com suas indecisões e ímpetos, de um aprender caminhando (o estar em movimento pela existência é uma característica de muitas narrativas bíblicas), expondo significados tanto de nossa condição humana quanto de nossa brevidade e da compreensão da adoração a Deus e de sua Presença.


Gênesis 1.1, disponível em bibliaportugues.com



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