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FÉ E SABEDORIA


Euler Sandeville Jr., novembro de 2019


os princípios humanistas e as religiões

Os princípios humanistas que inspiram muitas das pautas éticas e de direitos mais gerais nas sociedades contemporâneas, desde o final do século XVIII em diante, têm suas origens nas religiões mais antigas do planeta. O que os modernos e contemporâneos fizeram foi purgar o sobrenatural e dar uma instituição civil e laica, além de supostamente universal, a esses valores. Assim adaptados e reinventados, e subordinados ao imediato do visível e do material, passam a ser um constituinte fundamental dos direitos atuais.

Entretanto, há diferenças profundas entre as formas modernas e as dos antigos.

Dada a emergência da sociedade urbana e capitalista e nela da sociedade de consumo, com suas disputas entre acumulação exacerbada e direito civil ou coletivo e as ilusões do poder colocando-se na disputa pelas consciências e pelo controle, nós estamos profundamente marcados por ideias como progresso, sucesso pessoal, individualismo, realização pessoal dos desejos e ambições, etc. Esses valores, que coexistem na dissolução de todos os valores e certezas na pós-modernidade, estão profundamente vinculados a um imaginário materialista e violento, superficial, e de desempenho performático contínuo.

A ciência, a filosofia, a política, as religiões, se podem nos ajudar na construção de valores éticos e meios de ação concreta, não legaram a construção de uma condição social com o respeito básico que devemos uns aos outros nesta jornada pelo tempo, nessa magnífica bola azul em que viajamos pelo cosmo na brevidade de nossas vidas. Infelizmente, não raro, os saberes e práticas humanos fizeram exatamente o contrário. Nossa ciência pode recriar muitos fenômenos da natureza, mas não aprendemos a controlar os resultados, consequências e desdobramentos sociais dessa ciência e técnica. Em nosso tempo impera a violência, a injustiça, a mutilação pela guerra e pela miséria, a corrupção, a destruição da terra que habitamos, embora, muitos de nós, ao contrário, valorizem a paz, a ética, a solidariedade, a justiça.

a sabedoria dos antigos

A sabedoria dos antigos, entretanto, difere muito dessa condição moderna e pós-moderna. Jamais é livresca ou individualista, presa a externalidades, como a dos modernos. Para os antigos, tal condição seria a negação da ideia e significação da sabedoria. Nesse sentido, se esses valores milenares puderam inspirar o humanismo, sua fonte é outra. De um modo geral, na sabedoria dos antigos não há cisão entre sabedoria e conhecimento e nem entre estes e a vivência. A erudição, os saberes e habilidades podem ter sua sedução e interesse, mas certamente não são nem sabedoria nem conhecimento.

A sabedoria é uma condição que se verifica na prática, no existir e no existindo; qualquer dissociação dessa condição soaria para os antigos como uma loucura ou cinismo. Eram perfeitos? Não, como nós também não somos. Eram humanos. A sabedoria não é um ato de heróis ou super-homens, ou grandes intelectuais ou pessoas com talentos especiais; é uma condição que pode ser construída apenas longamente em nossa existência, com simplicidade e humildade, tanto quanto com firmeza e consciência.

Assim, ainda que eu coloque nas minhas práticas princípios norteadores e entendimentos de nucleação cognitiva que devem orientar meus vínculos sociais em minha incompletude existencial, minha motivação íntima é arcaica, das sabedorias milenares. Em especial, é cristã. Dado o tempo que estamos vivendo, talvez seja necessário retomar os valores e sentidos primeiros desta palavra, que não tinha a ver com a religião, nem com o comportamento e seus ritos laicos ou sagrados, mas com a fé e com o âmago do ser. Essa é uma condição íntima, daquele que a tem. Não é transferível, não há como ser imposta.

a fé é uma condição espiritual

Parece-me então justo apresentar aqui a fé que me move e me define, que se realiza na confiança e no amor ao Senhor, nosso Deus, em Cristo Jesus, sacrifício para a nossa redenção e ressurreto. Essa é minha condição mais profunda, não é nenhuma presunção de tornar-me melhor do que outros, ao contrário, a humildade do Evangelho e a evidência das fraquezas e qualidades em minha vida mostram que não se trata disso.

Sendo assim, devo dizer que a fé é uma condição espiritual muito distinta da religião, porque esta última geralmente se define através de sistemas de organização eclesiástica, litúrgica, normativa e comportamental, o que pode ocorrer havendo ou não fé e pode tornar-se facilmente, pelo costume ou pela indiferença, uma realidade que se sobrepõe e pode até mesmo negar o Espírito das Escrituras.

Mas, se não são as regras e normas da religião nem seus ritos e representações simbólicas e rituais do sagrado, então, segundo as Escrituras, o que define a fé, o ser cristão?

É uma postura diante de Deus e de Jesus na oração e na leitura permanente das Escrituras, na devoção ao nosso Criador e de todas as coisas e seres que existem, na comunhão com Ele por meio de Jesus Cristo, segundo a máxima de amar Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, na vida em comum com os irmãos, tão imperfeitos como nós mesmos somos. Há apenas e unicamente dois ritos na fé cristã, que devem estar ancorados nessa sabedoria vivida e praticada e cujo valor não está neles mesmos, mas na comunhão com Deus: o batismo quando da conversão e a ceia em memória do sacrifício e da ressurreição de Jesus, quando nos reunimos em comunhão em Cristo entre os irmãos.

a fé, a intimidade com Deus e os atos

Assim, devo dizer que a fé não é um ideal de conduta. O que ocorre é que, o amor a Deus e à Sua Revelação, nos coloca a desejar uma conduta conforme a sabedoria, o amor e a justiça revelada nas Escrituras. O que nos traz uma consciência nada fácil de nossa imperfeição e incompletude, a par das possibilidades das virtudes. Apenas por isso há a vontade de superarmo-nos no decorrer da vida.

É nessa condição em que, consciente ou inconscientemente, a par da vontade de acertar e dos acertos que alcançamos, tecemos nossos erros de alvo em nossa relação com Deus e daí em relação ao outro; é o que chamamos de pecado. Ou seja, estamos sempre aprendendo e buscando transformar nossas práticas a partir da consciência de nossos erros, movidos nessa busca pelo amor a Deus. A essa de mudança de direção em que nos reorientamos a Deus e ao próximo chamamos de arrependimento, condição que é muito distinta da culpa.

Resta ainda dizer que não construiremos um mundo melhor destruindo este. Simplesmente, não somos capazes de recriá-lo. Além disso, há a implicação ética de estarmos destruindo um planeta que habitamos por tão pouco tempo, que não podemos recriar, que não fomos nós que criamos. Para qualquer pessoa deveria soar como um absurdo completo a destruição dessa natureza e da vida humana, e o para cristão, essa condição é o pecado. A confiança depositada no livro do Gênesis para que cuidássemos, governássemos sobre o planeta, não é uma autorização para a ação despótica, pois esta é sempre condenada nas Escrituras, na Lei, nos Profetas e nos Livros de Sabedoria, como também nos Evangelhos. O pecado contra a criação de Deus e contra os seres por Ele criados é um pecado e ofensa a Deus e uma irresponsabilidade conosco mesmo.

Por isso, a sabedoria das Escrituras não pode ser livresca, emana do conhecimento de Deus e do amor e submissão a Ele, ainda que haja igualmente a rebeldia e a violência em nosso coração. A sabedoria não é algo que se aprende pelo ensino, pela aquisição de conhecimento, mas é um longo e nada linear aprendizado de vida. É necessário, de uma vez por todas, reconhecer que o que chamamos de ocidente – essa condição tão recente na história humana – está em contradição com as Escrituras, cuja origem, além de oriental, é milenar.


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