Esta reflexão é sobre os anjos mencionados nos capítulos 2 e 3 de Apocalipse. O trabalho surgiu a partir de uma conversa sobre qual seria o melhor entendimento dessa passagem. A palavra angelō, utilizada no original grego, pode ser traduzida por anjo ou mensageiro. A questão que se coloca é se, neste caso, se refere a mensageiros celestiais ou a humanos. Mais especificamente, há uma tradição evangélica que vê aí uma menção aos pastores, representados pelos anjos e à frente das igrejas. Seria este o sentido?
Este trabalho está organizado em três partes, pensadas para serem lidas em sequência, preferencialmente.
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AOS ANJOS OU ÀS IGREJAS?
Essas sete mensagens têm uma estrutura bem demarcada, que em si já sugere algumas possibilidades muito ricas de leitura diante do Senhor:
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endereçamento: “Ao anjo da igreja [nome da cidade] escreve”.
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algumas características espirituais daquele que fala: “estas coisas diz [apresenta algumas características de Jesus]”.
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algumas das características espirituais daqueles que recebem a exortação: “Conheço tuas obras (…)” seguida, conforme seja necessário, de uma série de juízos e ou elogios à igreja e do prêmio prometido aos que vencerem as dificuldades indicadas. Só Laodiceia recebe apenas reprimendas, mas para aquele que se converter há também o prêmio prometido.
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convite final: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça o que o Espírito diz às igrejas”, sendo que às três primeiras igrejas o prêmio ao vencedor é anunciado depois dessa frase, nas demais antes.
Interessante notar que nos capítulos 2 e 3 é endereçada uma mensagem específica a cada igreja, e elas são nomeadas em ordem a partir de Patmos para o oriente, sequencialmente, sugerindo um círculo, todas distando em média 60 quilômetros uma da outra na sequência indicada (entre 60, 70, 65, 53, 45 e 65 km a partir de Éfeso respectivamente [1]). Obviamente não eram as únicas igrejas na Ásia; Éfeso, Esmirna e Pérgamo estiveram na rota da chamada terceira viagem de Paulo e possivelmente faziam parte de uma rota entre a Macedônia e a Síria. Observemos que Mileto, embora não tão importante quanto Éfeso, era uma cidade mais próxima a Patmos do que esta, e Colossos era vizinha a Laodiceia (Cl 4.16 [2]). Outras igrejas mencionadas no Novo Testamento situam-se relativamente próximas a essas, como Antioquia, Mileto, Trôade.
O quase círculo que essas igrejas formam não retorna ao ponto de origem em Éfeso (figura 1), mas pode-se considerá-lo fortemente indicado, como consequência do movimento proposto. Juntamente com o número 7, frequente em Apocalipse, penso que a nomeação das igrejas lembrando um círculo possa estar indicando um sentido de plenitude, de totalidade. Nesse sentido, seria totalmente supérfluo definir esses anjos como pastores ou mesmo anjos, devendo-se aceitá-los tão somente como mensageiros que levam as mensagens a toda a igreja, sem entrar no mérito de sua natureza. Esta me parece a melhor possibilidade, mas coloca a leitura em um campo intuitivo difícil de aceitar para o contexto moderno preso ás categorias e classes, inclusive dos seres. O sentido literal e profético acerca dessas igrejas já ocupou muitas páginas, e não será discutido neste momento.
Figura 1: As sete igrejas na Ásia às quais é enviado o livro das visões de Apocalipse por João. Disponível em subsidiosebd.wordpress.com/2012/04/13/igrejas-da-asia/ acesso em 08 de outubro de 2017.
Observe que a mensagem é dada a João (Ao anjo escreve). Ela é endereçada a um mensageiro (anjo) que deve entregá-la à igreja (a). As igrejas (ou os mensageiros) são conhecidas por Jesus, que é quem avalia as condutas em cada igreja (ou do mensageiro) (c). Atente que, ao final de cada mensagem, se esclarece que é o Espírito quem o diz às igrejas (d). A mensagem é dada por Jesus em glória e utiliza alguns intermediários humanos e ou angelicais, mas ao fim quem fala à igreja, ao coração humano, dotando de sentido e consequência a mensagem, é o Espírito. Pelo menos entendo dessa forma. No final do livro, o Espírito e a igreja clamam juntos pela vinda do Senhor [3].
Esta é a estrutura das sete mensagens às sete igrejas. No conteúdo dessas mensagens reside orientação vital para a vida cristã, endereçadas por extensão a quem tiver ouvidos e ouvir, ou seja, a todas as igrejas e cristãos que possam se deparar com os desafios e riscos espirituais assinalados nessas sete orientações enviadas pelo próprio Senhor, ou àqueles que, ouvindo, venham a se converter ao Senhor.
Uma leitura literal de como se encontra em nossas traduções permite indagar se o conteúdo das mensagens é dirigido às igrejas ou aos anjos das igrejas. Tal como está no português, em primeiro lugar, seria uma mensagem de juízo ao mensageiro. O contexto, entretanto, sugere entender que o anjo não é o destinatário, é apenas o mensageiro e ela é dirigida às igrejas. De fato, tem sido entendido assim esse texto pela maioria dos intérpretes e pregadores, até onde pude perceber. Também entendo assim. Não é mera inferência minha, nossas Bíblias, com os inconvenientes títulos e subtítulos, não anotam “carta aos anjos das igrejas”, mas “cartas às sete igrejas” ou “carta à igreja [tal]”. Por mais inapropriado que seja separar o texto, podendo influenciar a leitura, isso indica haver um entendimento corrente – acertado ou não – nesse sentido.
Meu desconhecimento do grego me impede de analisar mais profundamente a passagem como está no original: Τῷ ἀγγέλῳ τῆς ἐν Ἐφέσῳ ἐκκλησίας γράψον. Embora traduzido como preposição – “ao” – Τῷ é um artigo definido. A questão que se coloca, e que poderia resolver pelo menos parte das dificuldades, é se poderia ser traduzido literalmente como “O Anjo na igreja [de Éfeso] escreve”. Na Nova Vulgata está “Angelo ecclesiae, quae est Ephesi, scribe:” [4]. Porém, em nenhum lugar se traduz assim, e não disponho de conhecimento dos originais para discutir essa possibilidade. Razão pela qual me socorri da gentileza do professor Marcos Almeida que, por e-mail, me esclareceu como segue no que tange especificamente a essa frase como construção gramatical, eliminando essa possibilidade:
A construção no grego contempla uma característica das categorias nominais, ou seja, elas são declinadas conforme a função. Sendo assim, o substantivo, ἄγγελος, ου, ὁ, (forma como aparece no léxico) tem a função gramatical (em geral) de Objeto indireto. Por isso, a tradução ‘ao’ – que pode ser traduzido como ‘para o’. Ou seja, não somente o substantivo é flexionado, mas também o artigo que o acompanha. Sendo assim, a estrutura da construção do grego – passando para a estrutura do português:
Escreve tu (γράψον – Aoristo Imperativo Ativo 2 Plural – do verbo γράφω), para o anjo da igreja (τῆς ἐκκλησίας) em Éfeso (ἐν Ἐφέσῳ – construção aqui da preposição [ἐν – dentro de] com o seu substantivo na função vocativa).
A questão da Vulgata (Latim) é que nessa língua não há artigo, mas é língua que também flexiona categoria nominal, portanto, também tem função de acordo com a morfologia, como o grego, mas sem artigo.
O ANJO
Os versos 1.4,11 e 2.7 e seguintes mantêm aberta a possibilidade de lermos essas mensagens como que dirigidas às igrejas ou aos próprios anjos. Aceitando isso, vamos apenas procurar entender quem é o mensageiro (angelō) a quem são dirigidas as mensagens ou, como entendo ser o caso, aos quais é dada a responsabilidade de transmiti-las. A palavra grega traduzida por anjo é ággelos – ἄγγελος e ocorre 176 vezes no Novo Testamento (conforme a fonte de referência utilizada; com ajuda do interlinear pude localizar 174 ocorrências). No trecho em questão aqui, especificamente na forma angelō – ἀγγέλῳ, aparece apenas 9 vezes no Novo Testamento. Destas, sete vezes ocorrem nos capítulos 2 e 3 que estamos estudando, outras duas em Lucas 2.13,14 e Apocalipse 9.13-15. Nestes dois casos, o que não nos autoriza inferir algo sobre o ponto aqui em discussão, em Lucas 2 e Apocalipse 9, temos o sentido inequívoco de um mensageiro sobrenatural:
Então, de repente, apareceu junto ao anjo grande multidão da milícia celestial, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens de boa vontade. Lucas 2.13,14
O sexto anjo [ἄγγελος] tocou a sua trombeta; e ouvi uma voz que vinha das quatro pontas do altar de ouro que estava diante de Deus, a qual dizia ao sexto anjo [ἀγγέλῳ], que tinha a trombeta: Solta os quatro anjos [ἀγγέλους] que se acham presos junto do grande rio Eufrates. E foram soltos os quatro anjos [ἄγγελοι] que haviam sido preparados para aquela hora e dia e mês e ano, a fim de matarem a terça parte dos homens. Apocalipse 9.13-15
O Léxico do Novo Testamento de Gingrich e Danker (1984, pg. 10) corrobora o entendimento do sentido essencial ligado à ideia de uma mensagem a ser transmitida, na raiz da palavra, ao traduzir palavras como ‘aggelía – “mensagem, notícia 1 Jo 1.5 [5]; ou mandamento, ordem 1 Jo 3.11 [6]”; ‘aggiéllw – “anunciar, contar 1 Jo 20.18 [7]; 4.51 v.1.”. De ággelos – ἄγγελος nos diz:
1. mensageiro, enviado Lc 7.24 [8]. – 2. Anjo, ser sobrenatural que age como mensageiro Mt 1.20 [9]; guardião At 12.15 [10]; intermediário Gl 3.19 [11], servo dos santos Hb 1.14 [12]; ger. servos de Satanás, anjos maus, demônios Mt 25.41 [13].
Isto torna difícil a tradução para o português. Nos exemplos citados acima a solução é clara, talvez apenas Mateus 25.41 permita uma interpretação mais ampla. Nos demais casos, o contexto é suficiente para deixar claro o sentido. Observe que apenas em Lucas 7 é traduzida por mensageiro, em todas as demais é traduzida por anjo (veja o Quadro 2 para um levantamento mais exaustivo). Devemos observar ainda que era corrente na época o entendimento de anjos associados a lugares, coletividades e pessoas, como em At 12.15 citado acima (veja nota 20).
No caso de Apocalipse 2 e 3 a opção de tradução não é cabalmente segura, e nesse caso a opção adotada pode mudar um pouco o sentido do texto. Talvez tenhamos perdido um pouco a simplicidade de apenas ler, mas o fato é que a questão se colocou para nós por haver diferentes formas de ler esse texto. Se optarmos por mensageiro ficaria, em nosso contexto, não no original, praticamente excluída a possibilidade de entendermos como um ser sobrenatural, e se optarmos por anjo como seria literal, ficaria praticamente excluída a possibilidade de entendermos como um mensageiro humano, senão figuradamente. Isso porque a mesma palavra grega admite a tradução por duas palavras de significado distinto nas línguas modernas. Como os dois sentidos seriam pertinentes, resta a dificuldade de traduzir esse trecho por mensageiro ou por anjo, correndo o risco de que esta escolha direcione o entendimento do texto.
No grego não haveria essa dificuldade, mas a tradução para o português colocou um problema interpretativo. Não é uma dificuldade intransponível, e na maioria dos casos em que a palavra é utilizada no Novo Testamento, como já vimos, não afeta o entendimento do texto, sendo claro quando se refere a um mensageiro humano ou, como em quase todos os casos em que a palavra é empregada, como vimos, a um mensageiro angelical.
Em alguns poucos casos, entretanto, esse campo de interpretação possível, quando não é inequívoco, pode mudar um pouco o entendimento da passagem ou, mais exatamente, sua aplicação exegética, como em Mt 25.41 acima mencionado. Uma passagem onde essa decisão de tradução pode afetar sensivelmente o entendimento é em 1 Co 11, na qual Paulo discute o emprego do véu na Igreja em Corinto. Faz parte de sua argumentação:
Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos [ἀγγέλους], trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade. No Senhor, todavia, nem a mulher é independente do homem, nem o homem, independente da mulher.
Se entendermos que anjos são aqui mensageiros, duas possibilidades surgem. Primeira, seriam mensageiros celestiais, que observam e orientam a igreja em um plano sobrenatural, e parece ser o sentido adotado pelo tradutor optando por anjo e não mensageiro. Essa me parece a tradução mais correta e encontra apoio em outros escritos de Paulo. Isso daria também algum apoio a interpretar o mensageiro das sete igrejas na mesma direção. Segunda, embora considere menos provável, seriam mensageiros humanos, enviados de outras igrejas, como era comum, e que poderiam se escandalizar com as práticas e o contexto da igreja em Corinto.
Essa última tradução favoreceria um entendimento da passagem relacionada a usos e costumes no contexto específico da região de Corinto. A implicação interpretativa é que, neste caso, o uso do véu poderia ser entendido mais facilmente como uma recomendação circunstancial, específica àquele contexto cultural, tradução geralmente preferida por quem entende necessário desobrigar o uso do véu (não estou aqui discutindo ou resolvendo se é necessário ou não usar o véu, isso exigiria outras considerações que não cabem neste trabalho). No entanto, seria muito improvável – senão inadequado – ver esses mensageiros como presbíteros ou pastores, seriam, nesse caso, como era corrente, provavelmente irmãos em trânsito entre as igrejas, encarregados de levar mensagens aos irmãos em cidades diferentes. Parece-me pouco provável esta interpretação, nós é que relutamos diante do sobrenatural, mas seria coerente com outros escritos de Paulo serem de fato anjos.
Outro trecho em que a opção de tradução pode afetar sutilmente a comunicação é exatamente o de Apocalipse 2 e 3, que nos ocupa aqui. Primeira hipótese de entendimento, a mais direta: se é celestial, por que João, um humano, é quem dirige a mensagem ao mensageiro? Não me ocorre paralelo para isso nas Escrituras. Mas no próprio Apocalipse, a mensagem não é transmitida a João por meio de um anjo? E a ordem para que o Anjo transmita a mensagem não vem do Senhor? A ordem é para que João escreva o que está vendo (1.4, 11, 19). Podemos considerar que, tanto em Apocalipse, como em Daniel, a visão, a revelação não é apenas um estado subjetivo como modernamente tenderíamos a pensar, mas um experiência concreta, corpórea, em trânsito entre o mundo espiritual e terreno em que nenhum dos dois é suprimido, mas, ao contrário, momentaneamente aberto ao outro (1.17, Dn 10.8-10, também Ez 3.3, Is 6.1-7, entre outros).
Segunda hipótese, se é humano, porque seria indicado como uma estrela na mão direita de Jesus, sendo as estrelas tradicionalmente uma representação dos poderes celestiais? Neste caso, ainda poderia ser uma pessoa a transportar a mensagem na qualidade de presbítero, um pastor em sua pregação? Então, porque se utilizaria aqui anjo e não presbítero, de uso comum na linguagem apostólica (2 e 3 João, 1 Pe 5.1-4 [14])?
Desta segunda possibilidade, ser mensageiro humano, pela posição aparentemente central desse mensageiro, talvez em parte pela dificuldade de entender a comunicação por um anjo e em parte pela centralidade da figura do pastor desde a era moderna [15], alguns intérpretes por extensão do campo semântico entendem que ággelos aqui se refere ao pastor. Compreendo o argumento, mas até onde consegui estudar em nenhum outro lugar uma tradução nesse sentido parece ser favorecida. E, mesmo se fosse assim, por que não estaria indicado presbítero, ou função semelhante utilizada no Novo Testamento nesses casos (At 20.28; F 1.1; 1 Tm 3.1-7; Tt 1.5-9; 1 Pe 5.1-4; Ef 4.11; 2 Co 12.28 [16]), e presente no vocabulário escrito de João? Em sua segunda e terceira carta, creditando-se aqui a unidade de autoria entre as cartas de João e o Apocalipse [17], ele se apresenta como
O presbítero à senhora eleita e aos seus filhos, a quem eu amo na verdade e não somente eu, mas também todos os que conhecem a verdade, por causa da verdade que permanece em nós e conosco estará para sempre, (2 Jo 1.)
O presbítero ao amado Gaio, a quem eu amo na verdade. (3 Jo 1.1).
Por que João teria utilizado aqui a palavra mensageiro (anjo), se o que se queria dizer era outra coisa (presbítero), e se a palavra anjo, embora eventualmente utilizada para mensageiros humanos, estava solidamente relacionada a um mensageiro celestial no próprio Apocalipse de João? O argumento por um uso simbólico indicando “o pastor da igreja” encontra dificuldade também porque essa não era a estrutura das igrejas relatadas no NT, e sim a de presbíteros formando um colégio de anciãos. Esta interpretação do anjo como pastor, embora encontre um apoio tênue no estudo que fiz (Ap 12:1-4; Jd 1.13), permanece muito pouco provável e possivelmente em contradição com a organização da igreja na época apostólica [18].
Lembremos que a própria igreja de Éfeso, talvez 3 ou 4 décadas antes de João escrever o Apocalipse, era conduzida por um colégio de presbíteros e assim é a orientação de Paulo em suas cartas. Da mesma forma, todas as cartas apostólicas são dirigidas ao conjunto dos santos em cada igreja, nenhuma é dirigida à igreja através de um presbítero (ou pastor). Não vai aqui qualquer reticência de minha parte quanto a essa forma de organizar a igreja contemporânea, pelo contrário, vai minha sincera admiração aos que, diante do Senhor, dedicam-se ao pastorado. Apenas observo que pode estar havendo uma interferência intelectiva em função de um modelo longamente adotado na igreja cristã, que não necessariamente, e talvez improvavelmente, fosse o caso nesse trecho específico.
A palavra pastor (ποιμήν, ένος, ὁ) ocorre 18 vezes, sendo que apenas em Ef 4.11 referindo-se a uma função na igreja. Em Mt 9:36; 25:32; 26:31; Mc 6:34; 14:27; Jo 10:2, 11 (2x), 12, 14,16;Hb 13:20; 1 Pe 2:25 refere-se a Jesus e em Lc 2:8, 15, 18, 20 a pastores do campo. As referências a pastorear a igreja, além da já indicada em Efésios, aparecem em orientações aos apóstolos (como em Jo 21.15 [19]) ou a presbíteros (confira todas as ocorrências no material de apoio indicado no início deste artigo).
Epíscopo (ἐπίσκοπος, ου, ὁ), que também pode ser traduzida por supervisor, ocorre apenas 5 vezes, 4 delas traduzidas por bispo e recomendando o pastoreio da igreja de Deus ou as condições que deve perfazer (At 20:28; Fp 1.1; 1 Tm 3.2; Tt 1.7). Apenas em 1 Pe 2.25 refere-se ao Senhor Jesus. Em nenhuma delas é relacionado nem remotamente a estrelas ou a anjos (a não ser que tenha me escapado alguma passagem). Devo observar que em Apocalipse 2.27 é utilizada a palavra ποιμανεῖ que tem o sentido de pastorear e de reger (com este significado também em 12.5; 19.15, talvez em 7.17). Porém não se refere aí à atividade do anjo de Tiatira, o que então poderia abrir um espaço para o entendimento do anjo como pastor, mas, ao contrário, refere-se àqueles da igreja que vencerem:
Digo-vos, porém, a vós os demais que estão em Tiatira, a todos quantos (…). Ao que vencer, e ao que guardar as minhas obras até o fim, eu lhe darei autoridade sobre as nações, e com vara de ferro as regerá [ποιμανεῖ], quebrando-as do modo como são quebrados os vasos do oleiro, assim como eu recebi autoridade de meu Pai; também lhe darei a estrela da manhã.
Já em Apocalipse 3.1-6 os anjos são mencionados em 3.1 ao dirigir-se ao anjo da igreja de Sardes e em 3.5, no mesmo trecho, referindo-se sem dúvida a seres celestiais:
Ao anjo [ἀγγέλῳ] da igreja em Sardes escreve: Estas coisas diz aquele que tem os sete Espíritos de Deus e as sete estrelas: Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives e estás morto. Sê vigilante e consolida o resto que estava para morrer, porque não tenho achado íntegras as tuas obras na presença do meu Deus. Lembra-te, pois, do que tens recebido e ouvido, guarda-o e arrepende-te. Porquanto, se não vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que hora virei contra ti. Tens, contudo, em Sardes, umas poucas pessoas que não contaminaram as suas vestiduras e andarão de branco junto comigo, pois são dignas. O vencedor será assim vestido de vestiduras brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome do Livro da Vida; pelo contrário, confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos [ἀγγέλων]. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. (ap.3.1-6)
Presbítero (πρεσβύτερος, α, ον) ocorre inúmeras vezes, cerca de 66, significando sempre ancião ou pessoa mais velha. Diversas vezes refere-se aos anciãos judeus na liderança religiosa em Jerusalém ou nas sinagogas. No contexto da igreja em 1 Tm 5:2 refere-se a mulheres idosas e em 1 Pe 5:5 a homens mais velhos. Em Hb 11.2, a palavra traduzida por “antigos” é πρεσβύτεροι (presbyteroi). Em 17 vezes (At 11:30, 15:2,4,6; 15:22,23; 16:4; 20:17; 21:18; 1 Tm 5:1, 17, 19; Tt 1:5; Tg 5:14, 1 Pe 5:1; 2 Jo 1:1; 3 Jo 1:1), que nos interessam mais de perto, respeitado esse significado de pessoas mais velhas, designa homens na liderança de cada igreja, geralmente no plural. Ou seja, não há um presbítero em cada igreja, tal como o anjo da igreja em Apocalipse, mas vários presbíteros.
Em Apocalipse, o que também nos interessa bastante, o termo é utilizado 12 vezes, referindo-se a vinte e quatro anciãos diante do trono de Deus, os quais aparecem com frequência juntamente com os quatro “seres viventes”. Mesmo aqui temos um plural. Em nenhum dos casos, a exemplo de epíscopo, presbítero aparece associado a estrelas, anjos ou qualquer revelação sobrenatural, exceto os anciãos diante do trono de Deus, um número como já vimos fortemente associado às tribos de Israel e aos apóstolos, embora nesse caso não necessite ser este o simbolismo. De qualquer modo, esses 24 anciãos não aparecem relacionados a igrejas. Em nenhum desses casos encontrei qualquer apoio mais consistente para entender que os anjos de Apocalipse 1 a 3 pudessem referir-se a pastores, reforçando a possibilidade de que essa interpretação decorra de fato da cultura eclesiástica moderna.
* A menção não exige que se refira a um anjo maligno, está apenas dizendo que nenhum anjo pode opor-se ao desígnio de Deus. Há outras passagens que sugerem o mesmo argumento, como indicado aqui em Gálatas e Colossenses.
** Em 2 Coríntios nas duas vezes que a palavra é empregada refere-se a mensageiros de Satanás, sendo o mais apropriado entender que se refere a anjos, embora 12.7 possa eventualmente ser discutido.
*** 2 Pe 2.4 refere-se inequivocamente a anjos que pecaram, 2.11 provavelmente também, embora se possa entender quaisquer anjos.
**** Conforme argumento em estudo específico, parece-me muito pouco provável a interpretação de serem pastores, no entanto, em favor da dúvida relacionei estas ocorrências aqui. Do contrário, veríamos que em Apocalipse e João todas as referências seriam a seres celestiais. Observe que 38,5% do emprego no Novo testamento no grego ocorre em Apocalipse.
***** O trecho em Judas estabelece uma relação entre falsos mestres e anjos malignos.
Além desse contexto eclesiástico no qual nos inserimos, que induz muitos a entenderem naturalmente o anjo de Apocalipse 2 e 3 como pastor, o problema se amplifica porque na modernidade passamos a lidar mal com a percepção da existência e presença dos anjos. A figura que se tornou pitoresca do anjo-da-guarda individual contribui para esse desgaste de nosso entendimento, muito embora devamos considerá-lo para além da forma piegas como normalmente é representado da cultura ocidental, já que é mencionado nas Escrituras em Mt 18.10 [20], aqui dito por Jesus. Também é mencionado em At 12.15 (nota 20), neste último caso indicando uma compreensão popular na época. Na época chegou a haver um desvio do evangelho, com pessoas chegando mesmo a um culto dos anjos, como podemos ver na advertência aos Colossenses e talvez em Hebreus. Esse encantamento com seres sobrenaturais levou a desvios em várias épocas, e talvez a um receio de encarar tal como a Bíblia os indica. Os próprios anjos que servem ao Senhor recusariam qualquer coisa nesse sentido, como ocorreu em relatos bíblicos, inclusive no Apocalipse (Ap 22.8,9).
A partir do momento em que se estabelecem essas dúvidas, em que para nós o campo semântico soa aberto, fica implicado um tema para além desses capítulos e deste texto: o modo como vemos o nosso papel enquanto igreja e sua organização nesse cosmo espiritual para nós invisível. Ou visível demais em sua organização terrena. Deixemos essa discussão para outro momento e verifiquemos mais uma vez se tal possibilidade é de algum modo favorecida. O contexto de Apocalipse favoreceria entendermos essas “cartas”, na verdade mensagens, referindo-se a pastores?
NOTAS
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2 “Depois que for lida esta carta entre vós, fazei que o seja também na igreja dos laodicenses; e a de Laodiceia lede-a vós também.” Cl 4.16
3 “O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve, diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida.” Ap 22.17.
5 “Ora, a mensagem [aggelía – ἀγγελία] que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma.” 1 Jo 1.5.
6 “Porque a mensagem [aggelía- ἀγγελία] que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos outros;” 1 Jo 3.11
7 Houve um engano no Léxico ao anotar as referências. Trata-se de João e não 1 João: “ Então, saiu Maria Madalena anunciando [angellousa-ἀγγέλλουσα] aos discípulos: Vi o Senhor! E contava que ele lhe dissera estas coisas.” Jo 20.18.
8 “Tendo-se retirado os mensageiros [ἀγγέλων] , passou Jesus a dizer ao povo a respeito de João: Que saístes a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento”, Lc 7.24, aqui mensageiros humanos.
9 Mt 1.20; verso 24: “Despertado José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher. ”, aqui celestial.
10 “Eles lhe disseram: Estás louca. Ela, porém, persistia em afirmar que assim era. Então, disseram: É o seu anjo. Entretanto, Pedro continuava batendo; então, eles abriram, viram-no e ficaram atônitos.” At 12.15 Também aqui um ser celestial, indicando que na época se acreditava em seres celestiais em associação com as pessoas. Claramente, Pedro e o anjo pensado aqui são distintos.
11 “Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa, e foi promulgada por meio de anjos, pela mão de um mediador. ” Gl 3.19 Novamente, seres celestiais.
12 “Ora, a qual dos anjos jamais disse: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés? Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação?” Hb 1.14. Mais uma vez seres celestiais.
13 “Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.” Mt 25.41.
14 Além de 2 e 3 João, veja-se em 1 Pedro 5.1-4 o presbítero com a função de pastorear a igreja de Deus: “Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e ainda coparticipante da glória que há de ser revelada: pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho. Ora, logo que o Supremo Pastor se manifestar, recebereis a imarcescível coroa da glória”.
15 E antes do pastor reformado, do padre (herdeiro também do pater romano) desde a Antiguidade Tardia, antecipada com a função do presbítero na organização da igreja ainda no primeiro século. Devemos notar uma diferença entre o presbítero das escrituras e o pater, mas já devemos pensar na possibilidade de sobreposição na organização eclesiástica do catolicismo nascente sobre as estruturas sociais e administrativas romanas, como por exemplo a diocese. Há um interessante campo a ser estudado aqui, mas ultrapassa o tema que se apresenta nesta reflexão.
16 “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos [ἐπισκόπους, 1 ocorrência; ἐπίσκοπος, ου, ὁ 5 ocorrências], para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue.” (At 20.28); “Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo Jesus, inclusive bispos e diáconos que vivem em Filipos, …” (Fp 1.1). Esses trechos indicam que as igrejas eram conduzidas por um conjunto de anciãos (presbíteros), a passagem seguinte (1 Tm 3.1-7)indica a qualificação que os presbíteros devem ter: “Fiel é a palavra: se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja. É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não violento, porém cordato, inimigo de contendas, não avarento; e que governe bem a própria casa, criando os filhos sob disciplina, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja de Deus?); não seja neófito, para não suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação do diabo”. Na carta a Tito, Paulo reúne as duas especificações, um conjunto de presbíteros e suas qualificações: “Por esta causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem as coisas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros, conforme te prescrevi: alguém que seja irrepreensível, marido de uma só mulher, que tenha filhos crentes que não são acusados de dissolução, nem são insubordinados. Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como despenseiro de Deus, não arrogante, não irascível, não dado ao vinho, nem violento, nem cobiçoso de torpe ganância; antes, hospitaleiro, amigo do bem, sóbrio, justo, piedoso, que tenha domínio de si, apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem.” (Tito 1.5-9). Também em Pedro vemos a referência aos anciãos: “Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e ainda coparticipante da glória que há de ser revelada: pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho. Ora, logo que o Supremo Pastor se manifestar, recebereis a imarcescível coroa da glória.” (1 Pe 5.1-4), retomando aqui Jesus como o pastor da igreja, como ele mesmo ensinou no evangelho de João. Paulo menciona o pastorado em “E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores [ποιμένας; ποιμήν, ένος, ὁ, 18 ocorrências no NT] e mestres, …” (Ef 4.11). Em 2 Co 12.28, no contexto de tratar dos dons, menciona apenas apóstolos, profetas e doutores (mestres).
17 “A maior parte dos cristãos acreditava que João de Patmos, que se anuncia como autor (1:1,4 e 9: 22:8), não era outro, senão João, o discípulo amado. Embora houvesse dúvida quanto à identificação na Antiguidade, somente no final do século XVIII ela foi contestada pelos especialistas críticos” Bernard McGinn, 1997, pg 564. Segundo a Bíblia de Jerusalém “Uma tradição, representada já por São Justino e amplamente difundida no fim do século II (santo Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, o Cânon Muratori), identifica-o com o apóstolo João (…)” (pg. 2139). Um pouco adiante, o comentário da Bíblia de Jerusalém, nesse caso, segue por um caminho muito pouco provável e bastante equivocado. A questão da autoria, é relevante para a questão aqui tratada apenas se quisermos comparar o modo de referir de João em Apocalipse e nas cartas.
18 É possível que pela passagem do século I para o II, sobretudo nesse, comece a haver já uma centralização da liderança, portanto, não muito longe dos tempos de João. No entanto, esta não é a orientação neotestamentária.
19 “Depois de terem comido, perguntou Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros? Ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Ele lhe disse: Apascenta os meus cordeiros (…)” Jo 21.15, cf. versos seguintes.
20 “Vede, não desprezeis a qualquer destes pequeninos; porque eu vos afirmo que os seus anjos nos céus veem incessantemente a face de meu Pai celeste.”.
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